Piss Christ
Atrasei-me um pouco a escrever sobre esta matéria e causa dessa distracção é que já meia blogosfera (até Pacheco, o pró-guerra o mencionou) relaciona a questão dos cartoons de Maomé com Piss Christ, 1987, a polémica fotografia de Andres Serrano, para a qual o fotógrafo colocou um crucifixo num copo com a sua própria urina. Talvez nem tivesse havido polémica, não fora o título e a explicação da "técnica" que usou para chegar ao objecto.
O mundo assiste à revolta dos muçulmanos por causa dos cartoons publicados num jornal conservador dinamarquês.
Para mim trata-se tão somente de uma questão de avaliação do objecto de um ponto de vista: podem os cartoons ser considerados arte? Do meu ponto de vista não.
Os cartoonistas desenvolvem a actividade com premissas diferentes das dos artistas. Pretendem fazer humor, sátira e/ou crítica. Estes elementos podem ser encontrados nas obras artísticas mas a estas é inerente a criação, a inovação técnica e formal e a expressão de outras emoções, definidas pelo autor, sem compromisso prévio de tipo, nem a soldo de um jornal, galeria, estado, ou outros. A liberdade artística passa pelo descomprometimento inerente à condição do próprio artista. É evidente que os cartoonistas podem utilizar técnicas artísticas, os pintores podem fazer cartoons e os cartoonistas podem desenvolver artes plásticas. Mas os cartoons são, quanto muito, formas populares de representação e portanto a sua avaliação não pode ser feita com base nos parâmetros com que se define a liberdade artística.
Dito isto há uma outra questão que é a liberdade de expressão. E este é um ponto ao qual sou sensível: podem os humoristas brincar com tudo e com todos, salvaguardados pela necessidade técnica de construir situações sem restrições religiosas e outras igualmente sensíveis? Mário Soares, por exemplo, promoveu, ainda Presidente da República, uma exposição de caricaturas e cartoons de que "foi vítima" (e se ele tem inspirado essa rapaziada) ao longo da sua magistratura. É um bom exemplo.
Se por um lado a concertada reacção, porque já ninguém acredita na sua espontaneidade, dos povos árabes é um sinal do vergonhoso estado em que se encontram os seus valores (esclarecer que nenhum estado de direito pode aceitar a forma violenta e fundamentalista como alguns manifestantes se estão a portar), por outro é bom entender que o 4º poder tem de ter, à luz do mundo global em que vivemos, alguma regulação e que a exemplo do que faz na matéria politicamente editorial, sobre a qual toma partido, escolhe quem quer eleger e influencia sem freio a opinião pública e também nas matérias de política externa emite estratégias a defender esta ou aquela solução como foi o caso do director do Público, José Manuel Fernandes, acérrimo defensor da guerra de Bush, seria útil que os valores diplomáticos, o bom-senso e um certo cuidado com o tempo e o contexto fossem critérios considerados.
Por terem sido encomendados vários cartoons a vários desenhadores, sobre a mesma temática, desconfio sinceramente que se possa defender a liberdade de expressão.
E se os muçulmanos queimaram bandeiras e se manifestaram de forma violenta e incompreensível, embora tenham razão no que à provocação diz respeito, já os ocidentais exibiram o seu fundamentalismo de outras formas.
O autor Andres Serrano é subsidiado pelo National Endowment for the Arts. Sim amigos pouco esclarecidos: nos Estados Unidos a arte é fortemente financiada pelo Estado. Lá e nos grandes países do mundo. O que distingue Portugal é que aqui as formas de expressão popular são patrocinadas ao abrigo da confusão intelectual entre arte e produtos comerciais. Por exemplo "Coisa Ruim", recente filme de Tiago Guedes e Frederico Serra, é financiado pelo ICAM, lado a lado com o denominado cinema de autor, ou seja o verdadeiramente artístico, o que não se pretende que seja rentável nas bilheteiras e nos circuitos comerciais. Dizia-me um amigo meu que não obstante o recente sucesso de afluência de espectadores de "O Crime do Padre Amaro", do também meu amigo Carlos Coelho da Silva, que é bom que se diga não foi subsidiado por qualquer dinheiro público (e assim é que deve ser), mais tarde que cedo o público português se fartará de ver ficção de segunda, preferindo a genuína, americana e tecnicamente exemplar.
Acontece que no rescaldo da exibição de Piss Christ, o radical senador republicano Alfonse M. D'Amato, lançou uma cruzada sem precedentes contra o fundo de apoio às artes. Para quem não sabe o xôr (como diria o xôr professor Marcelo) D'Amato é não só um fundamentalista religioso ligado aos todos poderosos Evangelistas, um acérrimo defensor da Guerra e um dos maiores angariadores de financiamento do Partido. Aqui podem ler a sua exposição inquisidora ao senado, a 18 de Maio de 1989.
Já em 1995 os republicanos, então maioritários, conseguiram reduzir o apoio público do NEA de 171 milhões de dólares, para 99.5, como podem detalhadamente ler aqui.
Enfim. Os exemplos de fundamentalismo não param. E talvez o extremo tenha sido o brutal assassinato de Theo Van Gogh, controverso cineasta holandês que expôs em "Submission" a violência exercida contra as mulheres em determinadas sociedades Islâmicas. Curioso como perante tão extremo exemplo, porque aqui se sacrificou uma vida humana, os ocidentais, excepto o ferido povo holandês, não se revoltaram, censurando publica e veementemente o ocorrido, aparecendo agora chocados com a reacção de alguns radicais.