sábado, abril 29, 2006

Era uma vez...

Como começar? Uma vez em miúdo (não sei bem a idade) quiseram dar-me algo que recusei, por estar de birra. Acontece que eu queria a prenda (e seria uma prenda ou veneno?) mas não insistiram e portanto até hoje não faço mínima ideia do que se tratava. Do que me recordo, isto de brincar com a memória longínqua é sempre uma armadilha, fiquei mais chateado pelo meu interlocutor não me ter dado na mesma do que pelo facto de me ter privado ou do que pela curiosidade em saber o que era. Parece que foi há tantos anos... Terá sido?

Talvez não fosse bem birra, mas defesa por via do ataque. Essa lição está cá até hoje. Quando me oferecem algo desconfio sempre. E com os nervos à flor da pele essa reacção é potenciada.
Essa história de dar e receber é um bocado fodida. E daí que à defesa queira sempre dar, afinal a moral da história. Será que nos afectos também é assim? Não sei porque ando meio desafectuado e assexuado e descaracterizado.
A melhor coisa a fazer quando preciso de hibernar, quando sinto que não me deixam viver e que imagino ser a pior cena que me pode acontecer, é sorrir, dar e entusiasmar-me com o acessório. Angústia.

Agora sou hipócrita para a ausência. Enquanto preparo um bom e frio banho matinal, falo com os freak shows das generalistas. Acompanho a expressão dos meus ídolos Goucha, Gabriel e Fátima. Se estão sérios, se fazem cenas muito cómicas, mas também se são subtis como curiosos, bem dispostos, informadores de algo que não pode passar, ou simplesmente surpreendentes. Algo que ninguém está à espera. Faço as expressões coincidentes com o que vejo e muitas vezes respondo, complemento ou abro exageradamente os olhos.
Este é um recomendável e útil exercício. E fácil porque nunca há comoção. É muito bom viver as emoçõesdatelevisão.

Aqui a ouvir "Le Nozze de Figaro" (W. A. Mozart, gravação de 1968, Coro e Orquestra da Deutschen Oper Berlim, com direcção de Karl Böhm e óbvia edição da Deutsche Grammophon, 1996) não deixo de pensar noutras coisas. Trata-se da primeira colaboração do compositor com o libretista Lorenzo Da Ponte, que adaptou a comédia para teatro de Beaumarchais (1732-1799) que para sequela de Le Barbier de Seville (1775) escreve Le Mariage de Figaro, nova farsa na qual o autor se projecta na personagem central, o plebeu Fígaro.
A história é analisada de diferentes pontos de vista de acordo com o crítico, como convém. Muitos colocam o enfoque na matéria social: o Conde de Almaviva quer desfrutar da criada Susana de núpcias marcadas com o Barbeiro Fígaro.
Eu gosto especialmente de desfrutar da confusão melodramática proposta. Um desfilar de personagens disfarçadas e escondidas em locais improvisados criam um enredo por um lado voyeur, que como é característico leva o espectador a estabelecer uma relação de cumplicidade, mas que por outro estabelecem a ilusão que o disfarce continuo faz evoluir a história por via do que umas personagens sabem ou não sabem e de outras ainda que apanham segredos acidentalmente, o que leva à construção da trama. Basicamente Fígaro faz aquilo que se espera dele. Ultrapassa mundos e fundos para levar a sua avante: concretizar o compromisso que estabeleceu para a sua vida, casar com Susana. Enganado e perseguido até por sua própria mãe que, desconhecendo esse laço, com ele pretende casar.
Fígaro presta um serviço convencional a si próprio. A história acaba em bem com todos felizes e com os seus pares, o Conde com a Condessa, D. Bártolo com Marcelina e Fígaro com Susana. É isto um verdadeiro final feliz.

Mas tal como na pornografia aqui também a história é secundária. O que conta é a música que me chega aos ouvidos, me preenche o coração e me recalibra a ligeira dor de barriga. Vou colocar o 3º CD, o IV e último Acto.
Como diria o meu Professor de BAG: "Isto é claro?"

"You know what turns me on?

Intellectual"

(Woody Allen, in Broadway Danny Rose)

Notícias locais

"Ainda a procissão vai no adro
e já a zaragata é do ébrio
ainda a discussão vai no híbrido
e já a certidão é do óbito
de súbito
um punhal
e ei-lo que cai em
decúbito
dorsal
pobre instante, pobre morte
esse rapaz nunca teve grande sorte
não faz mal, não faz mal
pelo menos vem no jornal
pelo menos vem no jornal
pelo menos vem no jornal".

Sérgio Godinho

Little Phill

Sempre a brilhar este nosso seleccionador. Aceita negociar o desejo da Federação Inglesa pelos seus serviços, marca uma conferência de caciques para anunciar que não aceita sequer fazer parte da short list inglesa e que está de alma e coração com a selecção nacional portuguesa.

Nós, gente de brandos costumes e personalidade de canário, aceitamos. Portanto ele decide como, quem, em que circunstâncias e condições.
Portugal gosta de Scolari, mas a questão é: e ele? É capaz de gostar de nós? É por achar que não que luto.

quarta-feira, abril 26, 2006

Zanga

A semana passada estive três horas à espera de um veterinário a ser tratado como um canídeo sem espaço nem tempo.
A vantagem é que sempre vamos precisando de motivos para nos zangarmos e felizmente eles andam aí.
A outra vantagem é que pude roubar duas páginas de uma revista "Visão" antiga. Numa Mega Ferreira esclarece que geralmente um bom romance estabelece logo uma relação literária com o leitor na primeira página. Nada de especial até porque afirma que tal não se verifica no Ulisses do Joyce. Sim nós, os literatos, suprimimos o James. Andámos com ele na escola.

Depois na página 15 da "Visão" de 15 de Dezembro de 2005, António Lobo Antunes dá-nos uma pérola. No artigo intitulado (e dedicado a) "Juan Marsé", escreve:

"(...) É isto que se pode fazer em literatura: é necessário que o papel desconheça o próximo golpe, que o leitor, desprevenido, o receba de guarda baixa ou imaginando que em lugar de um directo de esquerda vem um gancho de direita: os maus livros são aqueles que nos deixam a cara e o estômago intactos. Em geral vendem mais por isso mesmo, porém não nos atiram ao tapete. O Monte dos Vendavais atira-nos ao tapete. Guerra e Paz atira-nos ao tapete. Qualquer grande livro nos atira ao tapete e ficamos-lhe gratos por isso, devido a ser rente à terra que vivemos e não conseguimos levantar-nos sem a ajuda do chão. Isto é difícil de explicar mas espero que tenham entendido.(...)"

A zanga essa, amainou. Mas venho por este meio solicitar que isso mesmo não se ponha à prova. Que é o mesmo que dizer que cá vai ficando. Inerte, silenciosa, camaleonica.
No outro dia saiu-me uma frase daquelas que nos ajudam a ter fé. "Os livros não são para encontrar respostas, são para nos levantar dúvidas." Quantos já o terão dito e de melhor forma?
São estes pequenos momentos que me recolocam. A noção de espaço e tempo voltou assim que saí do veterinário. Ele que trate cães afáveis e deixe os raivosos (e tempestivos) para Deus.

"(...)
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espirito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
(...)"
Poemas de Alberto Caeiro (1889-1915)

segunda-feira, abril 24, 2006

25 de Abril

24 de Abril: As trevas.

25 de Abril: A Esperança.


26 de Abril: A luz.

sexta-feira, abril 21, 2006

Eu, Rui Costa, me confesso!


Aquela expressão que inventei? "O príncipe entra e espalha o seu perfume"? Essa. Eu hoje sinto-me o príncipe. Tivesse engenho e conseguisse pensar e escrever, arrisco.

"Estou no banco. Mas sinto sempre que posso entrar e jogar. Faço-o melhor que os meus adversários e colegas (Não são a mesma coisa?). Nunca fui o Ronaldinho nem o Figo, nunca quis ser, apesar de poder ter sido mal interpretado.
Lembro-me do jogo do Euro contra os bifes, em 2004. Como sempre, porque para além de ser O Príncipe também sou frágil, estava no banco. Entrei. Fintei a defesa toda e chutei fora da área para golo. Não é futebol, nem poesia. É respirar.
Quando adormeço, às vezes, imagino ouvir um profundo, distante e grave, mas muito suave ronco, a meu lado. Acredito que são os sonhos a mostrarem-se. E sinto-me no paraíso."

quarta-feira, abril 19, 2006

White Post*
























  • * Porque estou mudo.

  • quarta-feira, abril 12, 2006

    Lost

    Como aprender a viver com a angústia da morte? Seguramente a resposta a essa pergunta leva milhares de cientistas em todo o mundo a desafiarem os limites do conhecimento humano para a obter.
    Os psicanalistas, terapeutas em geral, terão algumas respostas. Mas este texto é o de um leigo. Daquele para o qual eles desenvolvem a sua actividade.

    Viver com afecto e intelectualmente preenchido e estimulado é a única forma de ocupar esse vazio. O que mais me assusta é a preparação para a morte. Não preparar a nossa própria morte significa sofrer a dobrar, acho eu.

    Em diferentes fases desse caminho final ouvi duas frases que me fazem pensar que, apesar de determinada pessoa estar muito debilitada do ponto de vista da sua percepção do mundo, ausência de lucidez, o subconsciente espirra cá para fora o profundo entendimento da morte. Quase penso que a única certeza que nos resta, depois de perdidas todas as faculdades motoras e intelectuais, é a ideia que vamos morrer.
    "E é lá que vou ver a luz?", perguntaram-me a caminho do derradeiro internamento e;
    "Vi uma coisa escura", disseram-me à passagem de um carro negro.

    Enquanto não chega a nossa vez, a única coisa que podemos fazer aos outros é uma festa, um carinho, um beijo. Também dessa forma garantimos que assim connosco agirão.
    Garantir uma boa morte prolongada, porque súbita só é má para os que ficam e óptima para os que partem, implica numa sociedade contemporânea, ter condições materiais mínimas: possibilidade de ter assistência permanente no domicílio, que deve ter condições de acesso fácil, para que o percurso de isolamento aconteça o mais lentamente possível. Em alternativa a escolha de um espaço para recolhimento (casa de repouso, lar, etc.) com integração gradual, ou seja com permanências e dormidas faseadas no pré internamento para uma melhor habituação à fase inconsciente e dependente.

    Uma descansada percepção e compreensão da morte durante a vida, o que não é difícil pois muitos bons autores sobre ela escreveram em forma de romance, crítica, ensaio, estudo, etc. e muitos realizadores, compositores e artistas plásticos a desenvolveram e representaram, ajuda a estabelecer um melhor relacionamento com a ideia subconsciente que dela fica e que anteriormente falei.
    Um bom acompanhamento aos que nos são próximos ajuda a viver com a morte, como se fosse a nossa, ou parte de nós e fazê-lo com o peito aberto de afecto a desculpabilizar-nos e a aceitá-la melhor.

    "O amor é a única cura para a morte", terá dito Saramago na apresentação de "As Intermitências da Morte" e no quadro livre da nossa cozinha o António Lopes citou Carlos Amaral Dias, "Os amigos são o nosso air bag para a angústia da morte".