quarta-feira, abril 26, 2006

Zanga

A semana passada estive três horas à espera de um veterinário a ser tratado como um canídeo sem espaço nem tempo.
A vantagem é que sempre vamos precisando de motivos para nos zangarmos e felizmente eles andam aí.
A outra vantagem é que pude roubar duas páginas de uma revista "Visão" antiga. Numa Mega Ferreira esclarece que geralmente um bom romance estabelece logo uma relação literária com o leitor na primeira página. Nada de especial até porque afirma que tal não se verifica no Ulisses do Joyce. Sim nós, os literatos, suprimimos o James. Andámos com ele na escola.

Depois na página 15 da "Visão" de 15 de Dezembro de 2005, António Lobo Antunes dá-nos uma pérola. No artigo intitulado (e dedicado a) "Juan Marsé", escreve:

"(...) É isto que se pode fazer em literatura: é necessário que o papel desconheça o próximo golpe, que o leitor, desprevenido, o receba de guarda baixa ou imaginando que em lugar de um directo de esquerda vem um gancho de direita: os maus livros são aqueles que nos deixam a cara e o estômago intactos. Em geral vendem mais por isso mesmo, porém não nos atiram ao tapete. O Monte dos Vendavais atira-nos ao tapete. Guerra e Paz atira-nos ao tapete. Qualquer grande livro nos atira ao tapete e ficamos-lhe gratos por isso, devido a ser rente à terra que vivemos e não conseguimos levantar-nos sem a ajuda do chão. Isto é difícil de explicar mas espero que tenham entendido.(...)"

A zanga essa, amainou. Mas venho por este meio solicitar que isso mesmo não se ponha à prova. Que é o mesmo que dizer que cá vai ficando. Inerte, silenciosa, camaleonica.
No outro dia saiu-me uma frase daquelas que nos ajudam a ter fé. "Os livros não são para encontrar respostas, são para nos levantar dúvidas." Quantos já o terão dito e de melhor forma?
São estes pequenos momentos que me recolocam. A noção de espaço e tempo voltou assim que saí do veterinário. Ele que trate cães afáveis e deixe os raivosos (e tempestivos) para Deus.

"(...)
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espirito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
(...)"
Poemas de Alberto Caeiro (1889-1915)