Meu Dono Querido
Eu nasci, se não me falha algo parecido com a memória canina, a 10 de Março de 1993 e desde Junho desse ano que vivo contigo.Decidi escrever-te, na evocação do meu décimo primeiro aniversário e não me perguntes porquê... O lógico era escrever-te no décimo, ou no décimo segundo que é a esperança média de vida dos outros boxers meus amigos, mas ao contrário dos humanos nós, cães, não nos classificamos por raça, cor de pele, mas tão somente por sexo. Para nós caninismo, não é defeito porque cadela é cadela e cão é cão. Nos apertos somos todos gays, mas isso não nos retira masculinidade.
As lógicas caninas são diferentes das vossas, que já agora, são muito parecidas com as dos gatos_ que eu, como sabes, tanto gosto.
Prova da nossa lógica surrealista é que faltam quase dois meses para completar onze anos e não deixo de procurar relacionamentos com essa data para justificar esta carta.
Eu já estive para te escrever várias vezes, mas deu-me sempre uma incrível sonolência e decidi ir descansar. Agora faço-o porque, ao contrário de ti, achava que tudo na nossa relação estava subentendido e só então percebi que é mais fácil para ti perceberes o que lês no papel (no caso no ecrã) que nos meus olhos.
A primeira coisa que te quero explicar é a quebra de um mito. Quando as pessoas dizem à minha frente que eu sou albino e tu as recriminas porque achas que eu não sei isso, fazes mal porque eu sei que sou e tu és o único cão (desculpa, mas a nossa proximidade às vezes confunde-me), aliás pessoa, que defende que eu por ter pigmentação (olhos e manchinhas na barriga) não sou albino, mas sim branco... Esquece isso porque não há diferença: os meus amigos e inimigos dividem-se em pretos e brancos, sendo eu dos primeiros e as recriminações não têm nada a ver com cor, mas com os donos bons ou maus. Tem calma, tu és dos razoáveis, não te preocupes... Aproveito para te pedir que não te dirijas a mim com aquela voz de falsete como se eu fosse um bebé e já agora não me chames mais "bebé grande", "snow white", "caozinho querido" e outras paneleirices similares, especialmente à frente de terceiros, nomeadamente cães adultos machos, com quem tenho de manter alguma distância competitiva e é por isso que muitas vezes mijo por todo o lado, no desterro a que te levo, diariamente, a passear.
Como sabes, levar-te a passear, é a actividade que mais gosto: mais que comer, dormir, lutar, ladrar (não, não sou mudo, apesar de só me teres ouvido ladrar três vezes, não sou é histérico) ou mesmo que tu, apesar de tu poderes ser considerado uma não actividade. É por isso que corro, cheiro, olhos os pássaros, os gatos, os cães e até sinto o vento a passar-me pelas ventas, que é das mais difíceis actividades intelectuais, pela simplicidade poética inerente, que nem todos conseguem ,especialmente vocês humanos, por serem todos toxicodependentes.
Gostaria te pedir que canceles algumas coisas que não gosto na nossa vida: o Inverno, os banhos (a não ser que possa lamber o shampoo), a porta da rua (para eu passear mais e mais e mais) e as dificuldades porque passas, porque não te quero triste, embora saibas que tens aqui um ombro amigo para chorar, sempre que queiras. Anula a torneira do bidé, porque se a água estiver sempre a correr, posso beber sempre que me apeteça, sem ter que pedinchar, porque não se recusa água a ninguém. Deita fora a trela, não porque tenha algo contra a sua utilização (até acho divertido), mas a sua colocação, corta um bocado a excitação de ir à rua. Não censures as bolachas que me dão e passa tu próprio a ser um dinamizador desta actividade proibida, fazendo juz à tua condição de contestatário. A partir de agora deixa-me aproximar e lamber todas as crianças que eu vir, especialmente os bebés em carrinho, porque eu gosto e se isso for corrente eles deixam de ter medo de mim. Assim como cheirar estranhos e os seus sacos de compras.
As idas ao veterinário causam em mim uma dúvida existencial: gosto do passeio, andar de carro (é um vício compulsivo, porque assim que abres a porta a minha adrenalina sobe, para depois enjoar, acho que é isto que vocês chamam "pedrada"), encontrar outros cães e cadelas, assustar os pássaros e os gatos metidos nas gaiolas e chafurdar na pequena taça de água, criando um verdadeiro lago de água e baba, que me excita ainda mais. Ui! Aqueles olhinhos esbugalhados dos gatos assustados (será que eles não sabem que fui criado com três gatinhos e todos, aqui ou ali, gostamos de lembrar a infância?). Por outro lado as injecções e examinações não fazem muito o meu género, portanto corta esta parte e poderemos continuar a ir lá.
Vamos às coisas boas que temos que instigar e fazer mais vezes. Aparece mais vezes na televisão porque acho graça a este desafio esquisito de encostar o ouvido ao aparelho, sem perceber o que estou a reconhecer, ainda por cima porque estás ao meu lado. Arranja-me um gato e uma cadela. Vem viver para a marquise comigo, porque teremos menos frio, ou melhor, eu mudo-me cá para dentro. A partir de agora quero comer restos de comida temperada porque isso faz bem aos cães. Arranja-me vinte bolas de todos os tamanhos e cores (umas pretas, outras brancas) e devolve-me os brinquedos antigos que nunca mais vi. Autoriza que beba água da pia e passa tu também a beber, porque é divertido. Dá a chave de casa a todos os nossos amigos humanos, para me visitarem a toda a hora e faz algumas cópias para eu distribuir por umas gatas aqui do bairro. Boa piada, a das gatas... Acaba tudo com a Dona, porque passas muito tempo com ela e não é necessário. Ah! Para ela não ficar triste continua a ser minha Dona (se deixar de me tentar fazer festas na cabeça, não sei porquê: dos outros gosto, dela irrita-me). A partir de hoje sempre que comprares um maço de cigarros para ti, compras-me um para eu comer.
Explica-me de uma vez por todas porque é que se riem tanto da expressão "beber água como os cães", que eu sinceramente não vejo aí nenhuma punch line...
Algumas notas sobre nós e o nosso passado. Reconheço que estiveste sempre do meu lado, que é o mesmo que dizer que estive sempre contigo. Lembro-me das nossas zangas: não tinhas razão nem por causa da destruição da casa (eu era um cachorro e ainda hoje se puder arraso uma casa em cinco minutos) nem na única ordem que achas que cumpro, o teu altivo "quieto", por causa dos atropelamentos. Agora pergunto-te: alguma vez fui atropelado, ah? Alguma vez? Então para quê tanto pânico?
Vivemos muitas coisas engraçadas, desde viagens com aquela alcateia a quem chamavas banda, a uma ou outra moça a que assisti tu a complicares o que é fácil (basta uma posição), a discussões, alegrias, mimos, festas, passeios para o fim do mundo (quando fazemos outro?), etc., etc.
Entre nós os cães há uma velho pensamento que diz que, independentemente dos donos todos que tivermos na vida, há sempre um que é "o dono".
Meu dono querido:
Escrevi estas palavras para te dizer que, para onde quer que vá, quando tiver de ir, nunca te esquecerei e que gosto muito de ti, que é o mesmo que dizer o vice-versa.
Assinado: Jaqué.
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