sexta-feira, julho 23, 2004

Carlos Paredes 16/02/1925-23/07/2004

À família, amigos e companheiros de toda a vida, as minhas sinceras condolências. Ao mestre um obrigado único por tudo o que os seus sons e silêncios me transmitiram.

 

 

 

 

 

 

 

 

 
Para além de toda a discografia editada, ouvi e presenciei três concertos do mestre. Na Esc. Secundária de Benfica (hoje José Gomes Ferreira), em Évora e no São Luís, entre 1989 e 1992. A grande lição de vida tive-a no da ESB.
Uma produtora francesa gravava uma série de documentários sobre os grandes guitarristas do mundo. Solicitou ao Conselho Directivo (CD) a cedência do anfiteatro para captar imagens de Carlos Paredes em situação de concerto, juntamente com a presença de público, maioritariamente os alunos.
O anfiteatro (Bloco C) é um amplo espaço com capacidade para 500 pessoas, concebido para servir de sala de espectáculos, sim, mas sobretudo com aplicação versátil uma vez que divide a escola ao meio, servindo como lugar de passagem e convívio e contendo em si mesmo a biblioteca, salas da Associação de país e estudantes e a secretaria e o próprio CD. As condições acústicas são tudo menos ideais para qualquer concerto.
Foi-me solicitado, enquanto presidente da AE, que apoiasse a iniciativa, servindo de ponte entre os produtores e os alunos: eu sabia melhor que ninguém como gerir o Bloco C cheio de malta efusiva por ter duas horas de gazeta.

O espaço encheu. No corredor superior, por cima das bancadas, foi montada a estrutura para o charriot e por todo o lado uma panóplia de pessoal atarefado colocava luzes e contra-luzes a rigor. Os alunos estavam naturalmente excitadíssimos.
No palco duas cadeiras. Uma para Luísa Amaro, que já se encontrava no local a cuidar os pormenores. Mestre Paredes não e assim esperámos mais de uma hora. Acontece que Carlos Paredes vivia a cinco minutos da Escola, pelo que nos foi explicado que alguém da produção o tentava convencer a vir dar o concerto, uma vez que, como nada tinha sido combinado previamente, o Mestre hesitava em comparecer porque temia a reacção dos alunos. Quando finalmente entrou, uma explosão de alegria, gritos e palmas, enunciou que os receios, inspirados na timidez do Mestre, não tinham fundamento e que uma grande empatia existia imediatamente entre ele e os 500 alunos, professores e funcionários que enchiam o recinto. Embora, muito provavelmente, uma grande parte destes desconhecesse a sua obra. Não era o meu caso, porque conhecia alguma coisa por intermédio do Pedro Amaral.

A grande lição de vida veio a seguir.
A produção televisiva esqueceu-se de trazer material que amplificasse o som, tendo simplesmente trazido a necessária captação. Portanto, com as fracas condições acústicas, o recinto cheio e duas guitarras a soarem sem amplificação restava rezar para que um coro de assobiadelas e urros acabasse com a aventura. Mas não foi assim.
Carlos Paredes dirigiu-se aos presentes e explicou, com o seu tom genuinamente humilde e a transbordar sinceridade, a situação. Disse que pedia encarecidamente que todos fizessem silêncio de modo a poderem ouvir o que ia tocar.
É extraordinário que em nenhum momento duvidei que isso iria acontecer.
Quando ecoaram os primeiros acordes de Verdes Anos recordo a potência da sonoridade, não em volume entenda-se e o rigoroso, único porque jamais alcançado naquele espaço e naquelas situações, silêncio que meio milhar de pessoas imediatamente fizeram. Um encantamento colectivo, virado para o centro do palco, onde as notas nos enchiam e arrepiavam, onde os nossos olhares se trocavam impressionados e emocionados e onde um estranho ruído de fundo marcava, por assim dizer, o ritmo, ou o contra ritmo, da obra e que mais tarde vim a reconhecer como a respiração do Mestre. No final do primeiro tema uma nova explosão do público anunciou uma hora e tal de profunda comunhão, entre um bando de adolescentes e Carlos Paredes. Por certo todos os que viram aquele concerto o passaram a ouvir regularmente e a admirar a sua obra.

 Hoje, como sempre, sinto a música de Paredes através das suas notas, dos seus e meus silêncios e especialmente através do som da sua respiração. Que nunca deixarei de ouvir.