quarta-feira, setembro 17, 2003

Televisão e Estratégia

2ª Parte: MEMÓRIA CURTA: 10 ANOS NO MEIO


"I could have called this (...) False Memories. Not because I want consciously to tell a lie but because the act of writing proves that there is no deep freeze in the brain where memories are stored intact. On the contrary, the brain seems to hold a reservoir of fragmentary signals that have neither color, sound, nor taste, wating for the power of imagination to bring them to life. In a way, this is a blessing.(...)"
(Peter Brook, in "Threads of time, a memoir", Ed. Metheun 1999)

Nota prévia: é certo e sabido que muitas coisas aqui expostas foram sempre por mim ocultadas, especialmente a jornalistas e afins. No entanto o presente blog é um documento pessoal e livre e por isso julgo ser importante este balanço que, como entendem, pertence a um vasto ciclo de textos sobre a estratégia que preconizo para a Televisão. Achei por bem inserir o relato da minha experiência com dois objectivos: ilustrar o estado da TV em Portugal e partir da minha própria experiência para a elaboração da presente tese (aliás que outro ponto de partida pode ser mais valorado, não obstante os livros e a observação, in loco e mesmo a partir de casa, dos canais nacionais e estrangeiros). Agradecia que salvaguardassem que ao expor uma série de inconfidências, o faço no âmbito de uma reflexão contextualizada e não no regabofe da imprensa especializada.

Por volta de 1993 eu estava envolvido em dois projectos: O Teatro de Aprendizagem (criado por volta de Abril do ano anterior, cuja estreia se deu em Outubro do mesmo, com a peça, por mim encenada "Casado à força", de Molière) e a Banda Mecos criada por volta de Julho, por mim, o Gonçalo e o Espanhol, para actuarmos na Quinta da Graça, à Cruz Quebrada. O Teatro de Aprendizagem "lutava" desesperadamente para levar à cena Medeia de Eurípides o que se veio a revelar uma experiência dolorosa, para a qual não estávamos preparados e a Banda procurava um baixista (veio a encontrar o Rui Santos) para assentar praça no Xafarix, por dois anos.

Sinceramente não me recordo como lá fui parar. Sintomático.
Lembro-me vagamente de me dirigir a uma garagem transformada em misto de estúdio e escritório em Carcavelos e fazer uma experiência (casting) de imitação das vozes de Cavaco Silva e Artur Albarran para o programa Journalouco da SIC, uma vez que o imitador Canto e Castro apresentara a sua demissão. Tenho a vaga ideia que fui imediatamente aceite, naturalmente porque a situação era urgente e não havia mais ninguém que as fizesse para além do citado e do Fernando Pereira, a braços com uma mega carreira internacional nos EUA, com entrevistas à porta de gloriosos casinos, encostado a limusinas estrondosas. Estava assim aberto o caminho da fama. Foi-me, no entanto salvaguardado que deveria treinar a voz de Mário Soares para o dia seguinte, o que fiz afincadamente durante a noite inteira, repetindo infinitamente a cassete do concerto de Amália Rodrigues no Coliseu, concretamente na parte da entrega da Grã Cruz da Ordem e Espada (não tenho a certeza do título, mas recordo mais ou menos a cantilena) por parte do então Presidente da República. Ao outro dia apresentei-me para gravar e "helas" aceitaram a tentativa de réplica do Mário. Mal eu sabia que critérios, em televisão, não existem... Não sei por quanto tempo (não muito, talvez seis meses) me mantive naquelas dignas funções, o suficiente para o Sr. Castro voltar. Nem sei o que pagavam, mal seguramente, mas bem para as minhas necessidades e devo ter falado aí uma vez com a dona do circo, portanto a experiência a esse nível foi muito boa.
Mas a outros criou-me gravíssimos problemas profissionais, como que um aviso sério para os próximos dez anos: acontece que eu fazia as imitações para criar momentos de crítica e humor nos espectáculos da Banda. Eram abordagens de improviso e pura ingenuidade, que eventualmente teriam alguma graça, dependendo do estado de espírito e especialmente da situação mais ou menos de origem teatral recriada. Ou seja, as imitações funcionavam não tanto pela qualidade da interpretação (entenda-se parecença) vocal, tão somente pela diversão espontânea, que inicialmente conferiam uma certa originalidade à Banda. Acontece que com o decorrer do tempo o posicionamento natural do grupo atraía o público alvo mais ou menos pré definido nas nossas cabeças (sem nada planeado, obviamente)_ a malta nova urbana e impunha o estilo verdadeiramente inovador de repertório tendo em conta que de uma banda de "covers" se tratava (tocávamos Sitiados, Entre Aspas, Rádio Macau, Resistência e outras coisas absolutamente inéditas no circuito) . Para mim isso começava a ser incompatível com a cena das imitações, que associava a uma espécie de parolice televisiva, da qual achava que a Banda se deveria afastar urgentemente. Mas eis o que é a noção de espectáculo neste país: parte do público e principalmente os donos dos bares e baiucas em que trabalhávamos, adorava e aclamava esses momentos, fazendo-nos reféns das situações anteriormente divertidas e naifs, transformando-as agora em verdadeiras torturas para mim e para o estilo que se pretendia. Sorte que nos concertos cedo deixámos de ter esses momentos porque entendemos que não funcionava. Valeu-me nessa altura umas brincadeiras evasivas com o Mário Crespo e o Vasco Lourinho, nos seus estilos únicos de narrativa jornalística.
Numa ambivalência digna de Édipo, era precisamente daquilo que andava a fugir que procurava realizar.

Encontrei na pesquisa que fiz para o presente, por acaso, enfiado no livro "Casado à Força" a ficha de casting do primeiro programa que apresentei: "Tudo ou Nada" para a SIC. Nem sei como detenho este verdadeiro documento arqueológico, datado de 16 de Fevereiro de 1994, mas é um grande lapso. Casado à força com o início desta profissão de tudo ou nada. Estou quase a chorar.
O Cajó (então sócio do Xafarix) disse-me que tinha dito à sua amiga Teresa Guilherme que conhecia "um puto fantástico". Nem valorizei muito este facto mas a verdade é que fui efectivamente convocado para um casting. Verdade, verdadinha convocado, porque em Portugal as pessoas (os actores) descendem dos cavalos e não são convidados como no resto do mundo, são convocados, mas adiante. Cheguei com a mesma sensação que tive em 1989 e concorri e ganhei o concurso Get More Fun da Telefunken (uma fantástica viagem a Los Angeles): seguro, determinado e vencedor. Juntaram todos os candidatos (por assim dizer anónimos, porque outras estrelas também fizeram a mesma prova, em circunstâncias diferentes) no estúdio e começou a palestra. Eu não conhecia ninguém envolvido naquela produção, nem tão pouco a senhora da limpeza, embora tivesse sido indicado tal como todos os que ali estavam uma vez que não foi anunciado publicamente. Sei que desmistifico a sempre presente cunha mas foi assim mesmo, sem tirar nem pôr. Para mais decidi que não faria qualquer alusão a quem me teria indicado por minha iniciativa. Durante a palestra (proferida pelo António Reis) decidi não lhe prestar atenção, ou por outra fingir que. Todos o olhavam concentradamente e eu mirava os projectores, as câmaras, os restos de Décores, enfim todo o mundo mágico das luzes da ribalta, avaliando toda a sua dimensão e sonhando com tudo aquilo que imaginava me pudesse dar.
Funcionava como uma tortura medieval. Após cada prova alguém da produção vinha anunciar ao grupo todo os que estavam rejeitados, que abandonavam o recinto, no meio de abraços comovidos, lágrimas e desejos sinceros de boa sorte para os apurados. Eu estava afastado do grupo, aproximando-me sempre que alguém vinha proclamar algo: via na televisão um programa (gravado) em que o Carlos Mendes e o Fernando Tordo convidavam a própria Teresa Guilherme e eu imaginava-me a ser entrevistado dali a dois três meses, tivessem eles a sorte e o engenho de me escolher. Ficaram cerca de quatro pessoas para o final do casting, três longas horas depois de ter começado. Aí uma das produtoras (Carla Carvalho) dirigiu-se a mim e perguntou como soubera daquele evento, ao que respondi. Fiz a última das provas com único pensamento técnico que me ocorreu: ritmo e quebra de regras. Na verdade simulava eu próprio as provas dos miúdos, fazendo gincanas por cima das cadeiras de plástico (parti uma) e correndo e saltando animada e despretensiosamente pelo espaço, ocupando-o de uma forma que imaginava (e tinha razão) não convencional. No final, soube que os resultados seriam divulgados uma semana depois e preparei-me para abandonar o recinto das festas. Pensamento primeiro: ganhei de caras. Pensamento segundo: se não for desta, tanto me dá, tenho cá tudo. Ao cimo das escadas a Teresa Guilherme: "Então não disseste que conhecias o Cajó? Se não te perguntássemos não dizias nada pois não?" ao que gaguejei qualquer coisa e corei. Rematou com o seu conhecido: " Ah, rapaz".

Desenganem-se: no nosso país tudo o que parece em televisão, nunca é. O único motivo que leva uma estação/produtora a escolher alguém novo é simplesmente financeiro. A maior parte das pessoas que chegam, trabalham a qualquer preço e eu não fui excepção. Mas, justiça seja feita, enquanto trabalhei na SIC fui sempre relativamente bem remunerado, em comparação por exemplo com a televisão do Estado. Fui contratado para fazer 26 emissões do Tudo ou Nada, a versão portuguesa do Double Dare da Nickelodeon, por uma quantia semanal que somada mensalmente era semelhante à que auferia com a Banda. Aos 22 anos não me podia queixar... Acabei por fazer oitenta e oito emissões e fui justamente aumentado por volta da emissão setenta.
O programa era um simples "game show", onde dois pares de crianças disputavam a vitória em cada emissão. Havia perguntas e jogos físicos simples, até porque o estúdio era muito pequeno, ao contrário do americano. No final, uma prova consistente de um pequeno percurso acrobático, decidia o par que alcançava os melhores prémios.
Não tinha qualquer noção do que estava a fazer e confesso, penso hoje, que ninguém tinha. Lembro-me que achava a televisão genericamente uma pasmaceira e procurava acima de tudo, que tudo fosse muito rápido e concreto, sem perder tempo com as parvoíces do costume. Recordo também que procurava tratar os participantes como iguais, desviando-me assim da tendência paternalista corrente. Isso foi bastante apreciado. O que eu não sabia é que as pessoas (familiares, público em geral, meio televisivo) só fazem apreciações sobre o que está bem. Omitem os erros e eram muitos, especialmente os de português e a falta de preparação para as entrevistas, já por si difíceis, com interlocutores que pouco têm a acrescentar ao Estado na Nação e à Conjuntura Internacional.
De qualquer forma o programa tinha um "boneco" (designação do meio para aspecto televisivo sobre a fotografia e o Décor) suficientemente inovador, para que o sucesso fosse alcançado. Efectivamente por causa, primeiro, do "Tudo ou Nada" e, depois, de toda uma vasta estratégia, a SIC passou a dominar o share infantil, especialmente ao fim de semana e numa altura em que após o desencantamento sugerido pela não liderança no arranque (a RTP de Eduardo Moniz segurava a audiência com unhas e dentes) se preparava a inversão. Caí assim nas graças do Emídio Rangel, até porque ele sempre aparentou uma empatia forte com os seus diversos colaboradores, o que óbvio dadas as funções que desempenhava. Sensivelmente a meio do programa surge um proposta irrecusável: apresentar o "Rock Rendez Vous" em formato televisivo, para a RTP2, com aumento de cinquenta por cento no salário e prestígio garantido, especialmente para quem como eu que vivia de um projecto na área da música. Decidi que iria aceitar e isso mesmo transmiti à Teresa Guilherme. Ela falou com o "chefe" e acabei convocado para o gabinete dele nesse mesmo dia. Como estar numa reunião com o Emídio Rangel e a Teresa Guilherme? Borrifei-me simplesmente e expliquei que para a minha actividade fazia muito mais sentido ir para a RTP2, o.k. era a 2, mas mesmo assim. Rangel contra propôs-me duas saídas: assinava um contrato com a SIC (eu era tarefeiro da Teresa Guilherme Lda.) idêntico aos "apresentadores da casa", escolhidos no primeiro casting da estação (José Figueiras, Ana Marques e Cândida Pinto) ou; mantinha-me como "free lancer" ligado à SIC, que ele próprio asseguraria que me arranjava mais programas para apresentar e inclusivamente (eu explicara-lhe que era actor e quanto muito músico, não apresentador "tout cour") teria a oportunidade de fazer uma novela na Globo, uma vez que se preparavam par recrutar dois actores portugueses. Fizesse o que fizesse não poderia abandonar a SIC. Apesar de enxertado em corno de cabra, surpreendentemente foi o que fiz.

Não posso dizer que Rangel me tenha mentido. Apesar da sugestão da Teresa Guilherme, não assinei contrato nenhum. Achava simplesmente que me exploravam e se ficasse com uma remuneração mensal ainda mais, embora mais seguro. Reconhecem-me malta? Passados uns dias mandei dizer (boa piada) que ficava a aguardar as oportunidades sugeridas, especialmente porque acreditava piamente que conseguiria ir para o Brasil (fui efectivamente à entrevista, nos estúdios da informação, conduzida pelo António Borga, mas nada aconteceu a não ser para o Paulo Pires) sem ter percebido que o que Rangel queria dizer era isto: " Serão mil cães a um osso e nós pouca ou nenhuma influência vamos ter na decisão da Globo", mas se calhar ele próprio não teve essa noção e há-de ter prometido a Globo em muitas horas de apuro...
Mas com o mercado televisivo atrás dos meus serviços, em Dezembro de 94 apresentei um especial de Natal da SIC (três horas diárias, durante 14 dias) e meti mais algum ao bolso, para logo em Março de 1995 passar para o Prime Time.

Chris Evans é um brilhante criador televisivo e radiofónico lá para os lados do RU e inventou uma das peças mais brilhantes de televisão de sempre: "Don´t forget your touth brush" (Não se esqueça da escova de dentes) que é vendida para toda a Europa, incluindo Portugal. A SIC prepara-se para dar a machadada final na RTP e conquistar a liderança nas audiências. O programa dificilmente consegue "pegar" nos restantes países, uma vez que grande parte do seu mérito se deve ao carisma do seu autor/apresentador, tendo em Espanha sido emitido três únicas vezes, após as quais foi cancelado. Em Portugal, não. Não só se aumentou a duração por programa em um terço, como se projectou imediatamente quarenta e seis emissões, aumentando de forma substancial o tempo total, logo a necessidade de criar ideias, para além das propostas pelo autor original. É evidente que nem todos conseguimos ser tão brilhantes como o Chris Evans (senão não estávamos aqui) e portanto lá abraçamos o projecto todos contentes, porque o caso não era para menos.
A coisa foi-me, mais ou menos, posta nestes termos: era necessário um actor que conseguisse ensaiar e treinar o público, de modo a que este fosse não só fervoroso, mas também participasse, respondesse e até dialogasse com a apresentadora e produtora da versão portuguesa. Lembro-me de ter sugerido o João Ricardo, acompanhado de mais dois ou três jovens actores que trabalhavam comigo no TA. Passados uns dias fui efectivamente convidado a desempenhar essas funções (fazia algum sentido, porque na Banda essa era um pouco a minha missão, embora de forma totalmente espontânea) acrescido das de Assistente da Apresentadora, em pleno programa, portanto um conveniente e verdadeiro dois em um. Obviamente aceitei, lá veio mais algum e para ser sincero gostei do trabalho de animador e provocador do público, mas vendo a esta distância a parte do programa, em si, foi bastante negativa. Primeiro a imagem: os Estúdios da Tóbis eram péssimos. Não tinham ar condicionado e é bom de ver aquela gente toda (cento e cinquenta de público, mais quarenta de equipa), no tempo em que o conceito luz fria era uma miragem, fazia com que se atingissem temperaturas de cinquenta graus centígrados. Para além disso ninguém para além de mim próprio, o outro, tomava decisões sobre aspectos físicos tais como indumentária, cabelo e maquilhagem. Acho, igualmente, que nunca encontrei o tom certo na contra cena com a Teresa Guilherme, uma vez que temos estilos diametralmente opostos. Finalmente, até tive algum prazer nas sequências exteriores (eu ia efectivamente destruir as casas das pessoas que se habilitavam a ganhar novos equipamentos) mas duvido um pouco da qualidade do produto televisivo final das mesmas. Ou seja, tal como os outros nesse e noutros programas, estava bem enquadrado: sobrevivia. Não pensava, não utilizava nenhum conceito técnico ou estético, simplesmente sobrevivia.
Nem dois anos passados sobre a minha entrada no meio e triunfal já chegava ao prime time, acrescido da passagem para a liderança das audiências, pela SIC, inclusivamente através do programa "Não se esqueça da escova de dentes" que ombreava inicialmente e passou a vencer o programa mais visto da RTP, "A mulher do Sr. Ministro" (eram transmitidos no mesmo dia).
Em Junho de 1995 é me igualmente confiada a condução de "Os Conquistadores", programa infantil de Verão, com quarenta e duas emissões e repetição em 1996. Valeu-me o meu primeiro carro novo, um VG Polo e de resto mais nada aí ficará para a história da comunicação...

(Chris Evans abandonou a televisão nos finais de 1995 (dois anos após o ingresso) para se dedicar à sua paixão: a rádio. Em Julho de 1997 despede-se do programa de maior audiência da Rádio Britânica (Breakfast Show) em colapso com o Director. Cinco meses depois recusa uma proposta considerada "escandalosa" para voltar à antena da BBC e ingressa na Virgin Radio.
Em Novembro de 2000 lidera uma lista de famosos britânicos dos media, "avaliado" em setenta e cinco milhões de libras. Em 2001 foi despedido da Virgin Radio, depois de faltar ao programa da manhã cinco dias seguidos, alegadamente para participar numa jornada de bebedeira com a mulher e um amigo. Acusou a estação e pediu uma indemnização de oito milhões e meio de papagaios ingleses, mas o tribunal (já em Junho deste ano) mandou-o definitivamente dar uma volta. Enfim, só em Portugal é que não se pode brincar assim).

Não completei as quarenta e seis emissões do "Escova", porque tive um acidente de mota na Costa da Caparica, a 15 de Agosto de 1995. Fiquei-me pelas vinte e cinco, o que não foi nada mau para quem se iniciava... Do acidente não adianta falar muito, porque não é trabalho e porque sobre isso a memória não é curta. Mas será interessante ver o ponto de vista do meio. Em primeiro lugar a equipa do programa foi excelente. Preocupados, cuidadosos e solidários, especialmente a Teresa Guilherme que não só me apoiou incondicionalmente (não que alguém esperasse que não o devesse fazer, mas fê-lo) como em vez de me substituir nos programas finais, encontrou uma solução interna de compromisso com o maestro (mais correctamente o arranjador e responsável da banda residente) Armindo Neves a desempenhar parte das minhas funções, algo que dado o meu estado apreciei. Emídio Rangel também acompanhou o processo de forma mais ou menos distante, mas preocupada e solidária. Aliás às dez da manhã do dia do acidente recebi uma chamada sua (as redacções recebem, não sei como, a lista de pessoas que dão entrada nos hospitais e compete a um estagiário avaliar se daí provém alguma matéria de interesse público, daí que tenha descoberto o incidente).
O pior foi a revista Caras. A directora de então (hoje administradora no grupo) solicitou-me, por terceiros, que lhe desse o exclusivo para sair no número zero, distribuído gratuitamente em três jornais diários e um semanal (se não me falha a memória). Recusei imediatamente essa ideia porque era uma perversão a que nunca me quereria sujeitar, já bastava o que bastava. Resultado: lá fui cilindrado e convencido a dar o exclusivo, sob troca de que acompanhariam todo o processo de recuperação. Apareci no cantinho da capa constituída pelo feliz casal Eduardo Moniz e Moura Guedes, todo o país ficou a saber que me espatifei todo (muitas pessoas ainda me perguntam se eu gosto de motas, o que nunca foi o caso) e as reportagens sobre a recuperação? Lá fizeram uma porcaria ou outra depois de muita insistência minha. Anos mais tarde essa directora (repito: ainda muito poderosa, não como o Bush, mas assim como qualquer director de televisão) disse a amigos comuns que eu nunca mais apareceria na Caras. Mas só para a chatear até já apareci e mais que aquilo que eu quero!
Com o "episódio Caras" senti a primeira traição da vida profissional. Não que não tivesse sido traído antes mas se calhar não realizei e depois: aqui não tinha ganho nada com aquela exposição. Compreendam que, hoje, me estou completamente a borrifar para revistas e afins, especialmente as de pornografia social, porque se não for social... Acontece que aquele, ficou combinado, seria o meu único veículo para com as massas, com o público, as luzes da ribalta, o sucesso, o dinheiro e etc. Mas pela primeira vez eu não controlava a situação. Pensava no limite da minha insegurança que estava tramado. Ainda bem, por um lado, que o acidente aconteceu naquela precisa altura. Decidi que precisava de tratamento e fui fazer psicanálise que com o tempo se transformou em psicoterapia, não que tenha tido alta, pelo contrário, mas quando se começou a desimpedir a cave descobriram-se mais coisas que as que se estava à espera e por aí fora. Costumo pensar que um dia retomarei a análise, quando estiver praticamente curado.

Em Fevereiro de 1996 estava de volta às lides para posteriormente não voltar à SIC.
Ao fim de trezentos programas o Júlio César demitiu-se do programa "Minas e Armadilhas" (até parece que o estou a ver a dizer aquele "os apanhados da SIC", no seu jeito tão característico) e faltavam onze emissões contratadas, para depois se decidir a continuação ou não do programa. Ainda a coxear e magro que nem um vira-lata apresentei-me ao serviço. Desconheço as causas do meu antecessor, mas quando entrei na Comunicasom (do Manolo Bello, hoje líder de mercado na produção audiovisual) a minha primeira tarefa era ler todas as revistas onde a minha nova parceira, Marlene Mourreau, aparecia na capa. E não eram nada poucas. Sem perceber onde queriam chegar, torci um bocado o nariz e propus que falássemos de televisão. Era esperado que eu aceitasse a minha parceira e a respeitasse como profissional, o que também não entendi porque outra coisa não me tinha passado pela cabeça. Os ensaios decorriam de véspera no hotel da rapariga, entre entrevistas a mais e mais revistas, a quem Marlene confessava a sua paixão por Dani, o craque do Sporting e do "Bas Fond". Não que o rapaz, coitado, a conhecesse pessoalmente (acho que só o Kennedy e o Sá Pinto se tinham cruzado com ela) mas ela insistia naquela estratégia, que parecia dar resultados. A minha humilde missão era simples: como a rapariga era francesa e não dizia uma palavra em português (o que para quem era co-apresentadora é no mínimo estranho) eu tinha de a ensinar a pronunciar. Bem comportada escrevia as palavras tal e qual lhe soavam, a partir da fonética e ao outro dia a coisa era uma merda, mas também acho que ninguém estaria propriamente atento à nossa interpretação. Ao fim de onze programas, o Rangel mandou aquela farsa palaciana às urtigas e eu fiquei desempregado. Justiça seja feita que nesse programa ganhei aquilo que acho rigorosamente justo para um apresentador de televisão, nas minhas condições de então. Os ensaios não eram pagos...

Durante cerca de três meses e após o desaire do "Minas" não recebi nenhuma notícia da Direcção de programas. Não obstante, quando convidado para o programa a seguir ("Aventura é aventura", na RTP1) ainda me dirigi à SIC e expus o problema. Emídio Rangel fez-me saber nos corredores da SIC (pelo António Borga) que não tinham de momento nenhum programa para eu apresentar, só lá para Outubro haveria novidades. No meio da minha ingenuidade quando surgiu nova oportunidade de trabalhar no prime time, agora na RTP (Os Principais!), ainda me dirigi à SIC mas sem qualquer efeito, pois não fui recebido. Para mim foi bom, dessa vez tive sorte. Nunca mais vi Emídio Rangel, até ao Natal de 2002, onde o abordei casualmente num peditório para a Associação Abraço, à porta do El Corte Inglês. Desfez-me em elogios rasgados durante dez longos minutos. Disse-me que deveria aparecer para conversarmos, etc., etc. Ainda lhe enviei um e-mail, sem consequências.

Duas notas finais sobre a minha passagem pela SIC: em primeiro a imprensa. Não é novo que eu me dou muito mal com a crítica e imprensa cor de rosa. Contam-se pelos dedos de uma mão os jornalistas a quem acedo falar ou tirar fotografias. Em Maio de 1995 a revista Dona (já desaparecida, paz à sua alma) fez umas alusões do foro pessoal. Liguei para a redacção e ante a recusa do director em ouvir disse mesmo à sua secretária que se voltassem a falar da minha vida privada eu mesmo me dirigiria às instalações e as partia todas, dando assim um bom motivo de reportagem. Ironia das ironias, nem uma semana depois solicitaram-me para uma entrevista e deram-me a primeira página, felizmente única (sozinho) até hoje.
Segunda nota. O realizador de todos os programas que fiz na SIC (e mais dois na RTP), foi o Carlos Coelho da Silva com quem estabeleci uma fraterna amizade que perdura até hoje. Curioso pensar que se opôs à minha escolha para o "Tudo ou Nada" (embora derrotado pela patroa e pelo António Reis) e que dez anos depois conservamos uma sólida e proveitosa relação.

Em Julho de 1996 a passagem para a RTP, que foi também um pouco casual. A Duvideo era (e é) a produtora técnica (ou seja aluga os equipamentos de captação e edição) da Teresa Guilherme Lda. e também do "Minas e armadilhas". Conhecedores portanto das minhas características convidaram-me para apresentar o "Aventura é aventura" (treze emissões, na RTP1), programa juvenil, apoiado pela União Europeia, para a promoção do Leite. Tratava-se de um mini concurso de provas radicais e decorreu na Serra da Arrábida.

Em Outubro nova viragem para cima. Fui convidado para o casting de um programa infantil, para a RTP1, produzido pela 6/25, posteriormente Altavision, comandada pelo José Nuno Martins. Disseram-me, mas não posso aferir, que foi por pressão do Nuno Artur Silva (então assessor do Director de Programas Joaquim Furtado) que fui o escolhido. Desconhecia que se tratava de um produto para o prime time, portanto lá fiz o casting descontraidamente e penso que mais ou menos bem.
Apesar de meio mundo me ter avisado de muitas coisas sobre o José Nuno Martins, decidi evitar que isso me influenciasse e avaliar por mim mesmo. Em boa hora o fiz porque sempre tivemos uma relação boa e cordial, provavelmente devido ao facto de nunca me ter sentido atemorizado por ele. Normalmente os monstros do meio são mais criados pelo diz que disse, do que pela própria verdade dos factos e falo com conhecimento de causa (já encontrei alguns profissionais que após o contacto inicial, se confessam surpresos pela minha personalidade, uma vez que muito lhes fora dito), mas acho que isso é transversal à maioria dos meios profissionais portugueses.
"Os Principais" foi um verdadeiro sucesso a vários níveis, fruto do algum prestígio da ideia. Efectivamente em oposição ao Mini Chuva de Estrelas (que estivera debaixo do fogo da opinião pública), neste programa as crianças efectivamente cantavam, inclusivamente acompanhadas por uma banda ao vivo. Durante as vinte e seis emissões desfilaram miúdos com talento, à razão de cinco por programa e com um repertório abrangente e ecléctico. Tive, é verdade, algumas questiúnculas referentes ao estilo de apresentação e mesmo no que à indumentária diz respeito: efectivamente o José Nuno queria que eu fosse vestido por uma loja de fatos para homem muito clássicos, contra a minha vontade e a do Figurinista. Para me vingar decidi pintar o cabelo de vermelho, com a conivência da Isabel Queiroz do Vale, que abraçou a ideia de braços abertos. Durante três emissões lá apareci eu de cabelo à punk, mas vestido como um homem trinta anos mais velho, tendo depois sido combinado que eu passaria a ser vestido pelo José António Tenente.
No dia da primeira gravação tive a única discussão grave com o patrão, que a mim se dirigiu de forma que considerei menos correcta, pelo que deixei bem claro que seria a última vez. De facto foi, provavelmente pelo imediato sucesso que o programa obteve, nunca mais fomos vistos a discutir, pelo menos daquela maneira.
O programa era líder de audiências na RTP e combatia a SIC taco-a-taco, tendo na final obtido um espectacular 15,4% de rating, considerando duas horas e tal de emissão em directo. Foi o meu primeiro directo e tudo correu de forma extraordinariamente feliz. Apesar de três ou quatro falhas no teleponto (umas por motivos técnicos e outras por distracção do operador) e da vez em que a câmara que era suposto dar a minha imagem ter caído (imediatamente forcei um operador de Câmara à mão a parar e poder captar o pivot) nunca perdi o fio à meada e senti sempre que estava finalmente no topo a que um profissional poderia aspirar: condução de programas em prime time e em directo, bem aceites por público e crítica, numa panóplia de sucesso e prestígio, nunca antes alcançados. Também não vou dizer que sabia exactamente o que estava a fazer, porque acho que não tinha a noção exacta, mas o programa era bem estruturado e cuidado ao pormenor, pelo que resultava, é o máximo que se pode dizer. A equipa técnica era de boa qualidade, fora os imbróglios pessoais em que me meti. A remuneração era péssima (inferior ao primeiro programa que apresentara dois anos e meio antes, no horário da manhã) e lembro-me de ter andado quase um ano atrás da RTP para me pagar.

(continua)