Rir
1- Lembro a vez mais recôndita que me desmanchei a rir. A rir daquela forma impossível de controlar, apesar do desespero de não poder rir, porque o visado poderia notar.Deveria ter aí uns cinco ou seis anitos. Um rapaz da Rua do Duque (ao Carmo, onde fui parcialmente criado pela minha querida avó materna), mais velho aí dos seus doze ou treze, era um verdadeiro mito resvalando de engenhocas (um futuro cientista ou algo perto deste imaginário) para um enigmático super herói. Estava na fase Marvel e explicava-nos_ aos seus admiradores, os super poderes mais e menos de cada herói e confessava-se ele próprio um super herói, especialmente com a frase enigmática com que respondia aos nossos pedidos de demonstração dos poderes: "os super heróis nunca se revelam", o que me deixava a relativizar a existência. Poderia ele de facto ser um super herói secreto? Quantos super heróis conhecia eu, sem saber que o eram? Qual a verdade sobre os super heróis? Andei um pouco tramado com estas perguntas, sem resposta. Na verdade, percebi mais tarde, ele era só mais informado... Dir-se-ia hoje "tem mais cultura". Da Marvel.
Acontece que no exibicionismo louco daquele rapaz a coisa deu-se. Eu vinha a descer as escadinhas do Duque. Vi um adulto desesperado aos gritos. Perto dele, o rapaz com um ar profundamente assustado e com cara de vergonha, como que a pedir ao homem que não protestasse (urrasse, é o termo mais apropriado) daquela maneira. O homem estava todo enrolado num fio de nylon, em cuja extremidade se encontrava uma nota de 100 escudos, que baloiçava por detrás dele qual cauda do animal eriçado. "Vais pagá-las", "Vais-me levar à casa dos teus pais" e outras coisas gritadas que já não recordo. Tentava rapidamente desenvencilhar-se daquela situação, mas o enrodilhar tramado do fio e o seu pânico irritado e incontrolado só pioravam tudo.
Era costume os mais velhos (os de dezoito e dezanove) fazerem a brincadeira da nota. Mais experimentados, raras eram as vezes que deixavam os mais pequenos assistir: parte do truque era não dar nas vistas. Eu cheguei a ver algumas vezes e ria-me muito com a brutal ganância disfarçada que levava o pessoal a correr atrás de uma simples nota. Os olhinhos das presas brilhavam, num misto de urgência em apanhar o dinheiro com a adrenalina de pensar no imediato uso supérfluo da maquia, em idas à imperial, macinhos extra de cigarros, quem sabe uma revista desaconselhada, ou todo um universo de desejos proibidos pela pobreza proletária de quem acabava de trabalhar um dia inteiro sem nenhuma recompensa financeira, quanto mais intelectual ou emocional. O jogo da nota é também a derrota pura do ser (enquanto) humano: a presa lança-se com ar de predador, com a ideia (e aqui o pior de tudo: sempre disfarçada) que limpou cem mérreis porque é mais audaz, porque é um vencedor, porque finalmente viu o que mais ninguém viu, porque a sorte lhe sorriu. A corrida termina de forma simples: o percurso da nota tem de passar por debaixo de um carro para vir ter à mão do verdadeiro predador. Não raras vezes os incautos ficavam vários minutos agachados a espreitar para baixo do carro à procura da nota, desconhecendo que esta se encontra no bolso de um dos rapazes de um pequeno grupo que ri a bandeiras despregadas, sabe-se lá porquê.
Outro dos pormenores importantes era o trajecto. Era fundamental ter um fio suficientemente grande, que permitisse passar o carro e dar uma volta no pé do corrimão de ferro das escadinhas. O pé servia como uma espécie de barra vertical que não só permitia conduzir a nota, como acelera-la.
Mas ao verdadeiro herói tudo correu ao revés. Porquê não faço ideia, só vi o final. Mas muitas coisas me passaram pela cabeça. Para já porque é que ele tinha decidido gozar transeuntes sozinho? Pior ainda: haveriam outros cúmplices que se piraram assim que a situação deu para o torto? Não deveria ter tido todo o cuidado uma vez que correndo mal, os papéis se inverteriam de forma brutalmente comprometedora? É que uma coisa é tocar umas campainhas e ser apanhado, outra é brincar com alguém no mano-a-mano. Ninguém perdoa uma cena destas. Para mais tudo correu tecnicamente muito mal. A vítima não surpreendeu o gozador, apanhando-o simplesmente a puxar um fio. Não! Embaraçou-se no próprio fio que puxava a imperial extra. E sendo que me pareceu uma pessoa tão drástica se calhar pagaria simplesmente um lanche extra ao filho, ou suplementava as compras semanais da mulher na mercearia. Aqui não haveria solução à vista: o prevaricador tirou o pão da boca de uma família inteira. Uma família pequena, mas em que o pai labora arduamente para ser uma família digna. Excepção a uma ou outra tentativa de um golpe miraculoso de sorte, na Lisboa real do início dos anos oitenta.
É agora evidente o que na altura me fez rir descontroladamente. Eu soube aliás porquê, mas não sabia ainda verbalizar. Aquele mesmo tipo que nos enfeitiçava com os seus saberes míticos sobre toda a panóplia de super poderes e engenhocas que nós jamais poderíamos imaginar construir, viu o seu mundo desabar porque não se manteve humano. Quis ser como os mais crescidos ou se calhar até só quis treinar para depois nos impressionar, praticando o truque só ao alcance dos mais velhos. Quis ser mais corajoso, mais habilidoso e mais arrojado e acabou a receber perdigotos histéricos de um pobre diabo. Com uma cara, digo-vos, inesquecível. Uma cara de arrependimento, de vergonha, de "tempo por favor volta para trás e eu serei realmente bonzinho". Com a perspectiva de ver toda a sua família envolvida naquilo que era suposto ser um simples gozo aos otários.
Nunca mais vi este rapaz e nem sei como se chama. Que é feito dele? Que futuro teve? Será que este homem perto dos quarenta, lembra o dia que mudou a sua vida? Provavelmente não. Se souberem alguma coisa de notas a fugirem de transeuntes, digam. E não as tentem apanhar.
2- Outra vez andaria por volta dos meus treze, catorze. Esta foi em grupo: nas aulas do 4º grau do Cambridge School o professor tinha uma meia de cada cor e eu, salvador dos distraídos, expliquei-lhe porque é que a turma estava há meia hora a rir, mas omitindo que a malta ria porque achava que o desgraçado não tinha dinheiro para as meias. Disse-lhe que precisava de um despertador para acordar bem e poder ver as cores certas, mas ele não acreditou, até porque a malta ainda riu mais. Inglês nesse dia, aprendeu-se pouco.
Também sempre foi engraçado rir dos desgraçados que cheiravam mal, neste ou naquele dia, por distracção ou descontrolo anal, ou da rapaziada com dificuldades em responder à professora, depois dela dar dez vezes a resposta, como se isso ainda os enervasse mais.
Aos dezassete, dezoito entrei num clube de vídeo pela primeira vez. Escolhi preciosa e demoradamente e encontrei um filme que nunca tinha ouvido falar: "Life of Brian". Embora colocado na prateleira de parvoíces que nunca alugaria, um aspecto chamou-me a atenção. Um grupo assinava a autoria, realização e interpretação. Os Monty Python levaram-me às gargalhadas, especialmente na cena em que Michael Palin faz um Imperador Romano com defeito na fala e os soldados não se conseguem controlar e riem, riem, riem. (recomendo www.pythonline.com para os fãs).
Há poucos anos assisti a esta cena: um programa de futebol na TVI. António Tavares Telles ria convulsivamente da proposta de João Braga de providenciar um aparelho intercomunicador entre o treinador e o capitão de equipa, como no râguebi. Quanto mais o primeiro se ria, mais o segundo se zangava e ameaçava que aquilo já não estava a ter graça nenhuma e mais eu me ria sozinho e de forma histérica.
3- Finalmente as que não posso contar. Ri-me sempre de coisas íntimas e familiares, mas não ficaria bem colocá-las aqui, cruamente. Espero que me sirvam de inspiração para muitas gargalhadas partilhadas. Muitas vezes ri-me de grandes parvoíces que fiz com amigos e normalmente muito bêbados, que nunca poderei divulgar. Também, recentemente, me rio de coisas que me fazem nervos_ pequenas anormalidades que partilho com a minha mais que tudo. Mas também não posso dizer. Rir é também um acto íntimo e muitas vezes solitário.
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