domingo, maio 21, 2006

About a boy (Sobre um amigo)

Sexta-feira passada tínhamos previsto fazer um jantar com fados de modo a celebrar a mágica integração do grupo de carpinteiros de São Félix da Marinha no nosso bairro. Ao mesmo tempo agradecer o apoio às Óperas Curtas, sem o qual não teria sido possível realizar os cenários. Local: o Restaurante Lucimar (Rua Francisco Tomás da Costa), onde quase diariamente nos encontramos.

Uma pequena confusão de produção levou a que os fadistas não comparecessem. Em seu lugar a rapaziada decidiu convidar o nosso amigo e vizinho Chico Fininho (nick dos tempos de escola, como nos confidenciou) para jantar connosco.

Chico Fininho é um homem com 40 anos, sem nada que o diferencie dos demais. Tem características individuais que confirmam essa similaridade. Assim que cheguei estava a pedir um jarro de vinho e perante o meu olhar repressivo, justificou-se: "não é para mim é para eles. Eu estou a beber gasosa". E estava. Eu tenho alguns cuidados com essa situação porque o meu amigo contou-me que toma fármacos que são incompatíveis com a ingestão de bebidas alcoólicas e como essa situação é permanente, convém não o deixar distrair-se.

A noite das cantorias começou por ser incómoda para mim. Por estar a cantar à capela, por haver vinho a granel para os espectadores e pelo facto de Chico Fininho ser uma verdadeira enciclopédia de canções, que é um dos factores que parecendo que não o fragiliza (a malta faz muitas fantasias sobre pessoas que sabem muitas coisas de cor) e aceitar sugestões para entoar todo o tipo de músicas maioria das quais eu nunca tinha ouvido, que iam de uma certa matreirice Quim Barreiriana a coisas menos genuínas e mais destrutivas. Aquilo que era para ser uma noite de fraternidade começava a ser um descalabro de chacota. É verdade que tive de, humildemente, intervir de forma discreta e selectiva, junto de um ou dois mais afoitos. Escusado dizer que serviu de exemplo e etc.

A coisa foi mudando aos poucos e quando demos por nós já estávamos num ambiente de respeito, diversão e comunhão. Aí deu-se a primeira estocada. Chico Fininho tem um gosto especial por temas de Zeca Afonso, Sérgio, Populares, Fausto e afins. Só percebemos essa prenda porque passámos a permitir que fosse ele a comandar o espectáculo, por assim dizer. Depois de "Maria Faia" entoou "Traz outro amigo também".
Não sei porquê, ou por outra, imagino mas não vem a propósito, chorei. Mas no plano consciente a sua voz forte e destemida, a autenticidade com que se dedicou e a memória dos tempos em que eu também me entregava genuinamente e sem nenhuma pretensão àquelas palavras, às palavras do Zeca, inundaram-me de comoção. Esse foi o ponto de viragem naquele que viria a ser um serão de magia e afecto.

Chico Fininho, explicaram-me, é filho de um importante homem que testemunhou fotograficamente o 25 de Abril, desaparecido há poucos anos. É do pai que herdou uma sensibilidade e informação esclarecida sobre ser de esquerda, defender valores e saber coisas interessantes. O que no meu bairro se denomina por "ter uma ganda cultura. O chavalo é um crânio". Lindo. Fomos teletransportados.
Mas Chico Fininho é um rapaz igual a mim. É essa parecença que me comove. Ambos vivemos com a força da arte escondida numa falácia diária e quotidiana, na qual trabalhamos para o sustento sem a poder concretizar. Ambos renunciámos a cantar e a representar, ainda que esporadicamente com isso sonhemos. Ambos sentimos que é o peso da sociedade que nos esmaga porque não temos força para ver que é o peso de nós próprios que nos prende à vidinha. A fronteira entre mim e ele é tão ténue como a dos restantes companheiros e vizinhos. Será que eles sabem?

Quando entoou "Balada da Despedida" de Machado Soares, aquele tema "Coimbra tem mais encanto/na hora da despedida", voltei a vacilar, com a mesma comoção e pelos mesmos motivos. No final convidei-o para cantar nos meus anos. Aí não será à capela e teremos a companhia do Gonçalo para dar o cunho especial que pretendo.

O mote desta história? "Traz outro amigo também".
O clímax? ABRAÇO-TE.

"Traz outro amigo também
Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja benvindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também"
José Afonso

ABRAÇO-TE outra vez.

3 Comments:

At 10:57 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Loucas são as noites de tertúlia, cada vez mais em desuso mas que alguns as querem recuperar.

Lá estarei nos teus anos.

O Gonçalo

 
At 12:11 da tarde, Blogger HB said...

A próxima será à tarde. Dia 24/06, no Lucimar. Aguardo-te companheiro.

 
At 4:57 da manhã, Anonymous Anónimo said...

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