O Caso Atkinson
Na passada terça-feira (2004-04-20) o comentador desportivo da ITV, Ron Atkinson (65 anos) acaba de comentar o jogo Mónaco - Chelsea (3-1) e retira o moderno conjunto de auriculares e microfone. Dispara uma série de comentários ao jogo e aos jogadores do Chelsea, pensando que o áudio se encontra cortado. Milhões de pessoas no médio oriente ainda escutam os modos com que disserta sobre o mau resultado da equipa de Londres. Faz comentários racistas, nomeadamente utiliza a "N word" (Neguer), em referência directa ao capitão Marcel Dessailly e especificamente dizendo que é um "fucking lazy neguer".Nessa mesma noite rebenta um profundo escândalo em toda a comunicação social britânica que não perdoa o lapso do decano dos comentadores e ex. treinador do Manchester United. No dia seguinte é despedido das suas funções na ITV e afastado do "The Guardian", para o qual escrevia, até então, uma crónica semanal. Já hoje, Ron Atkinson, é capa de grande parte dos jornais, apesar dos seus esforços em se retratar, dando entrevistas a todas as televisões, rádios e imprensa escrita, onde afirma que não é racista e que aquele foi "um erro que lamenta profundamente".
Poderíamos agora dissertar sobre a possibilidade de um evento destes acontecer em Portugal, mas não será o caso. Correndo o risco de ser profundamente injusto para os nomeados, acho mais divertido ficcionar. Esses que me desculpem mas tem de ser! É o meu ipiranga ao futebol português e aos seus dirigentes e acima de tudo ao recente caso "Apito Dourado", que melhor deveria ser "Pinto Dourado"... Isso são outros quinhentos...
"No final do próximo SCP - SLB, Gabriel o comentador retira atabalhoadamente os auriculares comprados na Praça de Espanha e esquece-se que o microfone colocado em cima da sua mesa e proveniente da II Guerra Mundial ainda está a emitir, apesar dos ruídos contínuos durante toda a emissão. Peida-se afectuosamente para Catarro e sorri. "Foda-se! Este Benfas é uma merda! O Escarumba, Preto, Tronhé e Macaco do Mantorras nunca mais recupera e é sempre a mesma foda! Não marcamos! Nem o branquinho, ariano e simpático Sokota nos safa. Olha vou mamar mais um whisky, à conta da lagartagem, que ao menos não joga com Black trinitrons!"
A mensagem é ouvida por milhões de energúmenos que aguardam que o "cabrão do espanhol" venha dar satisfações, para depois o crucificarem em programas de cultura e interesse intelectual como "A Bancada Central", nem que seja para enviar uns sms contra a invasão hispânica, no "Portugal no coração"...
Quem rebenta com a bronca é a TVI. Interrompe pela primeira vez uma emissão especial (porque foi pensada e executada para, excepcionalmente, ter graça) de "Os Batanetes" e lança um "Especial Informação", com Manuela, Juca Magalhães e três comentadores: Tovar para assuntos desportivos e o homem que há vários anos alerta para o problema rácico no futebol português, Coissoró por ser o único político quase preto e Marcelo só para deitar achas para a fogueira. Na emissão nada de especial acontece, exceptuando a reprodução das palavras de Gabriel, cedidas por cortesia da Antena 1 (as voltas que o mundo dá) e um momento mais ou menos importante:
Marcelo - "Ó xô Narana! Você não tem complexos em ser preto..."
Narana - "Eu não sou preto! Cruzes credo canhoto! Sou monhé, isso sim..."
Manuela - "Mas está aqui na qualidade de menor étnico."
Narana - "Isso é verdade..."
As repercussões são imensas. Gera-se uma onda de solidariedade para com o pobre comentador e as televisões, os partidos, as empresas e especialmente o povo, começam a reivindicar o estatuto do mais racista. A confusão é enorme.
A SIC Notícias lança logo um debate com o realizador do "Malucos do Riso" que defende em tese académica que "nós fomos os primeiros a ser racistas na televisão portuguesa" e inclusivamente "quando há personagens pretas, não contratamos actores que não brancos e pintamo-los, à antiga, recriando um género muito apreciado pelo cinema cómico americano dos anos cinquenta". No meio do debate o advogado Marinho defende que Gabriel não deve ser detido, sem inquirição, ou instrução, ou qualquer merda dessas, mas os pretos da Cova da Moura devem ser presentes ao juiz, porque se manifestam sem razão.
Do largo do Caldas a inevitável "conferência de imprensa": O PP vai propor o fim do Dia da Liberdade e em sua substituição vai-se passar a comemorar o dia Contra o Terrorista da Ex. Colónia, a 25 de Abril. A participação dos cidadãos é obrigatória.
Pinto da Costa interrompe um estranho e longo silêncio. Desde a detenção do Major que o presidente do FCP não vem à praça pública escarrar nos portugueses. Agora, embora ao telefone, irrompe no debate com várias ideias de origem rácica e com slogans muito apreciados pelas tascas deste país: "Portugal aos portugueses! Cada Mouro é um cabrão, excepto o inho! Se o Secretário fosse preto nunca tinha ido às putas, como os bons chefes de família!". Os elogios transversais não se fazem esperar e mesmo os adeptos dos outros clubes admitem: "Se o nosso fosse assim éramos os maiores!"
A sociedade portuguesa muda profundamente: nas referidas tascas, nos clubes, nas associações, nos partidos e até nas famílias deixa de haver preconceitos e o pessoal, só por causa de uma bendita frase de Gabriel o comentador, deixa de ter vergonha e assume com orgulho e veemência, algo que estava adormecido no coração de todo o nosso povo. Deixamo-nos de simpatias e que sa fodam os pretos! Excepto o maior de todos nós, pretos e brancos, Eusébio: que ele há coisas com que não se brinca."