quarta-feira, agosto 20, 2003

Já tinha ardido

1_ Em inícios de Agosto um grupo de Bombeiros, na frente de um incêndio em Leiria, comunica com o Comandante, no Quartel.
Informam-no que determinado grupo já jantou, mas que eles ainda não o puderam fazer. Chegam duas pessoas com frangos assados para vender. O Comandante autoriza a compra, salvaguardando a necessidade de factura, "que depois resolvo" (dica do TB, ouvida em rádio amador).
Este ponto de partida leva-me a algumas reflexões, sobre O Estado Negação: negação de infra-estruturas, negação de solidariedade, negação de seriedade.
A ideia de um país que ardeu emocional e intelectualmente há muito.
O País pegou fogo. Durante dias e dias, um outro país assistiu, pela televisão, à destruição de vidas. Para além disso verificou-se também a perca de bens materiais, menos importantes, mas que causam danos quiçá irreversíveis, a muitos que já pouco ou nada tinham. O prof. Marcelo, nas "Conversas em Família", traçou um dos poucos comentários acertados e não cacicados que se lhe puderam ouvir: "o país urbano ficou chocado com a desgraça do país rural". Percebeu-se que existem dois países, embora não tão díspares como imaginamos.
Já muita coisa foi dita sobre as causas, os responsáveis, o regabofe das indisciplinas sucessivas entre agentes activos de combate preocupados com a pequena política, a extraordinária posição de Eduardo Ferro Rodrigues ante a não exploração da ineficácia assustadora do Governo, os planos de recuperação, os planos de um futuro promissor no combate aos incêndios, casa assaltada trancas à porta, os meios magníficos das televisões a captarem imagens espectaculares, que inclusivamente servem para impressionantes promoções a "campanhas de solidariedade", o envolvimento do PR, do PM, dos PC e todos os "Pês" possíveis e imaginários, tudo devidamente escalpelizado por jornalistas, comentadores, opinion makers e... Sempre a mesma merda!

Mas observei algo de extraordinário, que me impressionou muitíssimo e que não sei se sei explicar.
Muitas das pobres vítimas, quando interpoladas pelas televisões demostravam uma profunda tristeza misturada com uma impotência atroz e na sua maioria (aqui vem a revelação que tive) uma grande vontade de chorar. A maioria daquelas pessoas que haviam perdido entes queridos (e mesmo os míseros bens, muitos deles de subsistência) transpareciam algo diferente de um choro compulsivo. Mostraram-me aquela sensação que tínhamos quando éramos pequenos e em algumas circunstâncias queríamos muito chorar e simplesmente não conseguíamos, ficando um meio caminho terrível, que provavelmente denunciava (aos coleguinhas, à professora, aos familiares) que na realidade não estávamos a chorar, mas queríamos, queríamos chorar, muito, muito, porque estávamos muito tristes, porque não havia solução, porque tudo estava perdido, nunca mais voltaria atrás, antes de ter acontecido... Mas por algo inexplicável não conseguíamos. Saía algo perto das lágrimas de crocodilo, mas sem ironia ou fita, porque a vontade de chorar era real, mas não conseguíamos. Mesmo em adultos procuramos muitas vezes "soluções" para chorar, encontramo-las em filmes, ou na música (erudita por vezes, outras aquela música que nos recorda algum momento, eventualmente mal passado, mas que não esqueceremos), quando a lágrima nos vem aos olhos e pensamos que chorámos por causa do filme e não pela nossa angústia, pela nossa mágoa, pela nossa solidão. Mas não foi bem isso, que imaginei ter observado. Imaginei ter visto a mesma sensação de estar a ver um filme "B" e que por acaso a coisa até está a correr bem e que por acaso até me calhava bem dar uma choradeira, mesmo que desenfreada, mas começa a correr mal, tudo muito denunciado e perco a vontade, ou por outra a oportunidade e já não choro. Pior ainda se o filme for verdadeiramente bom, este timing é fatal se não choramos no momento certo, a trama vira e continuamos a gostar sem ter conseguido. É mais perto desta última sensação aquilo que me foi transmitido por grande parte das vítimas dos incêndios.

Estas sensações levaram-me a um outro plano. Esclareço que não tenho, nem li, nenhum estudo psicológico ou sociológico, sobre estas questões, pelo que se trata de pura intuição. Associação?
Imagino que somos um país de gente muito triste, que vive em grandes dificuldades emocionais. Nem perante a grande desgraça somos capazes de chorar. De chorar realmente, sem meios caminhos. Imaginei, que especialmente os velhos de Portugal têm uma grande tristeza latente, guardada numa vida de puro sacrifício e abnegação, sem qualidade, nem carinho, nem fantasia, nem imaginação nem vontade de se desafiarem intelectualmente, ficando só com aquilo que lhes é servido, pois não existem forças para mais. Forças. Para ver outros mundos, que são descritos e inventados nos livros, nos filmes, nas pinturas ou esculturas dos loucos visionários, que os procuraram e acabaram a "(...)imaginar outros mundos (...) para esquecer como é doloroso este em que vivemos. (...) Ainda não havia percebido a imaginar outros mundos se acaba por mudar até este.(...)" (Umberto Eco, in "Baudolino", pág. 95, Edi. Difel). Nada resta senão viver a realidade tal como se nos apresenta, sem tirar nem pôr.
Quanto desta constatação chegou aos mais novos? Dependendo de quão, muito seguramente. Na nossa idade temos muitos subterfúgios, alguns eficazes (proximidade, diversidade, alguma liberdade individual, formação mínima) outros menos (herança democrática falida, falta de sentido revolucionário, excesso de oferta em oposição à dificuldade em procurar por via da confusão entre o essencial e o despiciendo), mas quem, no universo dos portugueses consegue viver com os seus afectos esclarecidos? Será um problema de todos, no mundo inteiro?
O atraso intelectual leva seguramente ao atraso emocional. Que fazer? Não faço a mais pequena ideia. Julgo que a solução estará naturalmente no indivíduo, mas que o meio (família, escola, país, mundo, por esta ordem) ajuda, ajuda. Ou seja com as pobres famílias que temos, a escola que vamos tendo, o país que tivemos e vamos ter, neste "mundo de ferro e aço", restas-te a ti próprio.




2_ Esta situação (dos fogos) leva-me a uma outra dimensão, a dimensão da Tanga (vou enumerar de forma blogesca, porque isto é realmente de menor importância, em relação ao descrito).

a) O Governo declara Estado de Calamidade e o Zé Manel explica que o faz excepcionalmente, uma vez que este enunciado só está previsto na lei ser activado após a catástrofe ter acontecido, pois as verbas destinam-se a cobrir danos e não a combater a ocorrência. Isto em plena devastação pirómana. Após muito dinheiro retirado à prevenção de incêndios. Com todo o universo de entendidos a exigir a declaração de Estado de Emergência, de forma a accionar um plano de combate com inúmeros meios técnicos e humanos e com o comando centralizado;
b) Para tal (Estado de Calamidade) disponibiliza 50 milhões de Euros;
c) A Comissária da EU Anna Diamantopoulou vem a Portugal e o governo informa que prevê prejuízos na ordem dos 1000 milhões de Euros. De forma irrepreensível a Comissária declara que a EU agirá imediatamente, ou seja assim que o Governo fizer um levantamento real dos custos. A EU prepara-se para disponibilizar dinheiro, cobrindo parte dos custos de danos materiais sofridos, sem olhar a questiúnculas nem pró-formas;
d) Aqui já há um pequeno problema técnico de negociação: se os custos rondam os 1000 milhões de Euros, e se se pretende que a EU se chegue à frente com 400, ou 500, não é muito inteligente disponibilizar só 50, uma vez que o pessoal pode desconfiar desta discrepância;
e) Entretanto nesta verdadeira relação e vocação transatlântica (que custou milhares artigos aos cronistas do regime), GW Bush parte de férias para o Texas, porque está com saudades da terra onde bateu todos os recordes de assassínio colectivo enquanto Governador, (152 condenações à morte, visitar s.f.f. o imperdível www.bushkills.com ). Os seus colegas Rumsfeld, Cheney e afins não são contactados, porque eles é que precisam de nós em ocasiões especiais (umas guerritas aqui e acolá) e nós não, mesmo em catástrofe, porque temos os otários aqui do lado;
f) Aliás Rumsfeld só serve mesmo para ajudar Paulinho a credibilizar-se, tendo como missão para o garante das boas relações entre os dois países, deslocar-se a Portugal sempre no dia a seguir a testemunhos sobre confusões de hotéis em Braga e Jaguares meio marados, nunca em caso de assuntos sem importância, como uns fogozitos sem expressão;
g) Todas as campanhas televisivas e afins de solidariedade metem-me nojo. Como exemplo dou aquele da RTP passar em rodapé que já tinha angariado 35 mil Euros. As estações, bancos e telefónicas, parecem nitidamente querer aproveitar toda esta situação, especialmente as primeiras, para tematizarem mais uma carrada de espectáculos Pimba em directo (reparem os custos que têm estas operações) com cantores de muito bom gosto, antes de começarem as Operações Big Brother. O ruído causado não ajuda nada e as campanhas desviam as estações de uma das coisas úteis que deveriam fazer: dar voz às populações nos períodos de rescaldo e reconstrução, porque mostrar só enquanto está a arder e a malta está a gritar é bom para as audiências, mas o pós situação pode efectivamente colocar alguma pressão na opinião pública e nos poderes decisórios;
h) Para os que estão chocados, aqui está a minha humilde contribuição. Em qualquer país civilizado o Governo (através do Ministério da Solidariedade) iniciava uma única mega campanha, com uma só conta e um só número, usava a sua influência junto dos operadores (televisões, rádios, jornais, etc._ sim porque o poder não serve só para nomear Administradores na Lusa, RTP, RDP, comentadores na TVI e futuramente na SIC, serve também para ser exercido em prol do bem comum) e, se não quisesse correr riscos de acusação de aproveitamento, entregava a gestão da campanha a uma associação independente que recolheria não só dinheiro, mas também bens de primeira necessidade, materiais de construção (mais uma vez o poder não serve só para angariar dinheiro partidário...), mão de obra e voluntariado logístico (bancos de tempo, por exemplo) definido regional e localmente, conforme a oferta e as necessidades. A causa humanitária passava a ser uma só e não uma espécie de causa criada por cada benemérito Director de Estação, a fazer lembrar os perversos documentários sobre cegos, incluídos no Jornal Nacional, em pleno lançamento da novela da gémea ceguinha...;
i) As tragédias, infelizmente acontecem. No passado as cheias na Lagoa das Furnas (Janeiro de 1998) e a queda da ponte Hintze Ribeiro (Março de 2001), só para dar os exemplos mais recentemente chocantes, exigiram um esforço suplementar do erário público. Isto não é nada de novo. É o mínimo que se pode tentar fazer. É o que se espera que se faça!