Asfixia democrática
Ontem, o povo português foi profunda e democraticamente asfixiado. Votei pela primeira vez na Freguesia de Nossa Senhora de Fátima, Lisboa e por isso fui cedo, não fosse o diabo tecê-las.
O ambiente é absolutamente arrepiante, sim, arrepio-me nestas coisas. Grupos de famílias e amigos a subirem a Rua Jorge Afonso, a caminho da escola, filas de gente para votar, a simpatia dos que trabalham nas mesas, a esperança de uns, a incerteza de outros, a vontade de votar, de decidir o rumo do país, de participar, de, com uma simples cruz, optar por aqueles que nos vão representar na assembleia de todas as assembleias.
A asfixia democrática que ontem vivemos, resultado de uma campanha asfixiante, cujos debates atingiram as maiores audiências de programas políticos e não políticos, cujo primeiro-ministro e todos os lideres dos partidos participaram pela primeira vez num talk show humorístico, também com grandes audiências, onde foram amplamente discutidas as propostas concretas (e até a sua ausência), onde milhões de pessoas participaram directamente em comícios, encontros e debates, onde por toda a parte se discutia, na televisão, nos cafés, nas casas dos portugueses, asfixiados, interessados, preocupados, sim, com o futuro comum que a todos diz respeito.
Uma asfixia visível, aliás, na comunicação social. Nunca como agora se discutiu a independência de televisões, rádios e jornais. Igualdade, equilíbrio e ética. Opinião, debate e entrevista sobre as agendas jornalísticas? Sim, fizemos tudo isso, de forma verdadeiramente aberta e esclarecedora. Quem hoje, mesmo de outros quadrantes políticos, não associa José Manuel Fernandes e José Eduardo Moniz a uma determinado partidarismo? Ninguém. Eles são de direita e queriam a vitória do PSD. Agora que o podemos dizer e que, sabemos, não são os únicos, é um alívio e não tem mal nenhum.
É claro, isso arrasta um problema. Imaginem que ao povo também interessa agora discutir a liberdade, asfixia, que se vive nas redacções. Que critérios estão por trás de certos directores de informação? De certos jornalistas, editores… Estes, acabaram sem querer, por abrir a caixa de Pandora…
E a ideia mais incrível desta asfixia: os portugueses escolheram dar continuidade a José Sócrates, reforçando ao mesmo tempo a responsabilidade dos partidos da oposição. Estamos asfixiados? Que isto continue, por muitos bons anos.
O estado do espírito
“ (…) Rimo-nos e chorámos juntos. Veria quem quisesse como percorríamos o Tiergarten ou o jardim zoológico ou ficávamos de mãos dadas diante dos macacos. Em todo o caso, estive eu contigo mais vezes do que aquelas que se podem comprovar contando. Os muitos instantâneos dos nossos momentos de felicidade. Ah, houvesse ainda todas aquelas imagenzinhas em formato seis por nove em que nós… (…) “.
Günter Grass, in A Caixa, pág. 134.
Uma silly season memorável
É notável o esforço de José Sócrates em valorizar esta campanha. É também um exclusivo do líder do PS. A moda parece pegar: nos debates sem ele, os restantes procuram expor as suas ideias. O resultado é dramático: nem um projecto, uma proposta uma solução, fez até agora eco.
Alguém já leu: “Louçã propõe…”, “Portas defende que…”, “Ferreira Leite vai fazer…”
Até aqui o combate foi marcado por três episódios fascinantemente ridículos. Primeiro, o caso Joana Amaral Dias. Como é óbvio direi apenas o essencial, guardando o resto para contar aos meus netos… Sabemos, hoje, que foi JAD que falou a Francisco Louçã sobre uma sondagem de disponibilidade de que foi alvo: nas relações profissionais, pessoais, políticas, na família há uma diferença substancial entre uma pergunta e um convite. Entre “queres casar comigo?” ou, “dás-me um beijo?” entre “estás insatisfeito no teu trabalho?” ou, “assine este contrato”, entre “fazemos o jantar de Natal na casa da Avó?” ou, “o Jantar é em casa da tia”.
Afinal, ficámos hoje a saber, Louçã lançou e alimentou uma mega campanha com a seguinte parangona: “José Sócrates faz tráfico de influências”. E Joana não gostou do abuso. Eu também não gostaria e garanto: não o teria permitido, assim que soubesse que alguém me estava a usar para os seus interesses, parava logo com a questão e não meses depois…
Depois foram as escutas no Palácio de Belém e o condicionamento de Alexandre Relvas: mais um projecto de comunicação, criado pelo PSD, que culminou com a ida da Assessora de Juventude da presidência à Universidade de Verão do PSD, assumindo com naturalidade o seu apoio ao seu partido. É evidente que os assessores de Cavaco, colaboraram, directa ou indirectamente, com as suas ideias, os seus contributos e as suas propostas para o PPD. Têm a influência e prestígio necessários para tal. Isso não seria notícia, a não ser a necessidade de esconder uma participação natural. O resultado foi o spin que se viu: em vez de “prestigiados militantes do PSD colaboram no programa eleitoral”, “Espiões do governo no palácio de São Bento”.
O caso TVI é a última grande notícia deste país, alimentada, claro, pela oposição. Alguém de bom senso jamais viria a terreiro defender aquela vergonha. Alguém que defenda a democracia, o direito à verdade, ao jornalismo sério e digno, pode vir a terreiro pronunciar-se favoravelmente contra a interrupção daquilo. Aquela hora semanal, foi a mais gritante forma de condenação pública, perseguição, calúnia e ofensa à dignidade que assistimos desde o 25 de Abril.
Assim, em vez de “espanhóis calam Moura Guedes” deveríamos ter visto: “Finalmente alguém teve coragem democrática”!
Assim penso, mesmo que fosse ao contrário.