quarta-feira, maio 24, 2006

Ainda sobre as leituras

Fiquei estupefacto por um casal amigo, em consonância, defender que os escritos editados de pessoas com a Sra. Rebelo Pinto são importantes porque, sustentavam, ampliam os hábitos de ler das pessoas. Foi há meses, mas ainda cá está.

Não percebi o alcance dessa proposta. A professora de Introdução ao Estudo da Literatura perguntou numa das primeiras aulas o que é que os colegas gostavam de ler. Parvo não sou e calei-me (é bom que as pessoas imaginem o que e quando ando a ler, é o meu pequeno contributo para a Literatura). Tolkien, JK Rowling e afins eram os preferidos. A senhora dava pulos de desespero. Mais tarde quando instados a fazer um trabalho (uma pequena análise) lembro-me de a ver discutir com uma colega, rejeitando longa e assertivamente a hipótese de O Nome da Rosa ser o livro a trabalhar. A professora negava completamente essa hipótese, porque lhe cheirava a vício. Aí arrisquei e perguntei-lhe: e Lodge, posso fazer sobre Lodge? Ela estranhou, acenou afirmativamente e voltou à sua discussão.

O prazer de ler tem, para mim, um outro lado. É que gosto de me ver no espelho das páginas. Às vezes imagino que há textos que foram escritos para mim. Isso enternece-me e envergonha-me. É só fantasia, claro, como é que tipos tão diferentes como Garrett ou Ananta Toer escreviam para alguém especificamente?
Mas o prazer instantâneo de fantasiar, esse ninguém mo tira. È meu. É um segredo entre mim e o autor e não é o contrário. Não abdico desse direito, desse privilégio.
E esse prazer, na lógica literária da paixão, é também malévolo. É por isso que, quando estudo (parem de rir, às vezes estudo) não consigo ler as cábulas que as editoras arranjam para, dizem eles, facilitar a vida aos alunos. Refiro-me aos cadernos com resumos de obras literárias.
Para mim não serve: EU QUERO O LIVRO TODO!

Por exemplo (desta vez, mas só desta, denuncio-me):

"(...) Não creio que possa ajudar-me _ disse ele _, para me ajudar realmente seria preciso ter ligações com altos-funcionários. Mas apenas conhece certamente os pequenos funcionários que se arrastam por aqui aos milhares. A estes, conhece-os seguramente muito bem e poderia obter deles muitas coisas, não duvido; mas o máximo que poderia obter-se deles não teria o mínimo efeito sobre o desenrolar do processo. Em contrapartida, perderia com isto alguns amigos. Não o desejo. Conserve as mesmas relações que antes tinha com estas pessoas; parece-me, com efeito, que elas lhe são indispensáveis. Não digo isto sem mágoa, porque, para corresponder apesar de tudo um pouco ao seu cumprimento, também me agrada muito, sobretudo quando me olha com esse olhar tão triste, como agora, o que não tem aliás nenhuma razão para fazer. Pertence à sociedade que eu devo combater, mas encontra-se aí muito bem, até ama o estudante e, se não o ama, pelo menos prefere-o ao seu marido. Isto adivinha-se facilmente nas suas palavras.
_ Não! _ exclamou ela mantendo-se sentada e agarrando a mão de K., que este não retirou muito depressa.
_ O senhor não tem o direito de partir com um juízo errado acerca de mim! Conseguiria realmente partir agora? Valho assim tão pouco que nem sequer deseja dar-me o prazer de ficar aqui mais um pouco?(...)"

Kafka, Franz (2003) O Processo. Lisboa: Publicações Dom Quixote

2 Comments:

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