segunda-feira, janeiro 16, 2006

O Amparo


Uma imagem ficará para sempre na memória desta batalha eleitoral histórica: a de Mário Soares a amparar José Sócrates, no final da intervenção do secretário-geral do PS, no grande comício no Coliseu do Porto, no passado Sábado (14-01-2006).

Esta imagem revela uma incrível alegoria, um simbolismo impar, uma metáfora afectiva.
Revela muito sobre o carácter de Mário Soares em relação aos desprotegidos, aos ainda que no caso temporariamente, se encontram desfavorecidos. Espelha uma ironia sublime: Soares, com 81 anos a ajudar Sócrates, no auge da força da vida. Mas esta imagem revela também a verdadeira justificação da candidatura de Mário Soares a presidente de todos os portugueses.

O Comício do Porto foi para mim um momento globalmente mágico, por diversos motivos. Primeiro o enquadramento, a sala do Coliseu, que guardo na memória como o espaço onde vivi o momento mais alto do meu próprio percurso profissional e portanto me inspira boas recordações. O cheiro, o mobiliário e a disposição envolvente fazem do Coliseu uma sala única e prova disso é a luta que os cidadãos do Porto fizeram para o preservar, tendo conseguido que ainda hoje exista. O Coliseu do Porto tem vida própria...
Depois a intervenção do Professor Sobrinho Simões. Não foi um discurso político, foi uma palestra científica que encantou e emocionou das mais altas patentes da intelectualidade à simples varina portista, parte integrante do imaginário da cidade. Acho que o seu discurso não deve ter tido repercussão mediática, o que por um lado é pena, por outro acrescenta aos que estiveram presentes, um prazer egoísta de momento único partilhado e vivido. A mim, encantou-me e foi talvez a melhor intervenção política que alguma vez presenciei, sem recurso a truques, soundbytes e parangonas, tão correntes como fáceis, inúteis e cada vez mais cansativas. O Professor Sobrinho Simões acrescentou algo à vida política: mestria e intelectualidade. Falou do conceito ancestral de comício, desmanchou a plateia com histórias da 1a República e sobre a idade de Mário Soares teve o momento alto. Contou que há vinte anos atrás corria no Parque da Cidade e sem conhecer pessoalmente Rosa Mota, também. Um dia ele estava mais cansado que nunca e ela, ao passar por ele, não conteve um comentário, com aquele bonito dialecto do Porto: "O senhor qualquer dia morre". Esta simples frase fez com que as pessoas soltassem uma gargalhada uníssona, porque tal como tem um significado diferente para a mensageira e para o receptor circunstancial, também para os 3500 presentes teve um significado individual e intransmissível.

José Sócrates foi também muito competente, como é reconhecido. Na sua entrada, outro momento inédito em eleições. Embora as presidenciais sejam por definição apartidárias, o povo em uníssono e de punho erguido gritou bem alto: "PS, PS, PS!". Para que não fiquem dúvidas sobre quem é quem e a favor de quem neste combate.

Poderia a campanha de Mário Soares, em contradição com o que observei em Coimbra e no Porto, não chegar ao seu objectivo. Poderiam painéis de sondagem manipulados e cientificamente contestados, criar nos portugueses mais desinformados, uma espécie de conformismo antecipado que não ajuda o combate democrático. Poderia o Etarismo (expressão adaptada do agism, Inglês, que significa a discriminação dos idosos em relação à participação social e cívica) vencer em Portugal, como o racismo, a discriminação por género e por orientação sexual, cada vez mais presentes na nossa sociedade. Poderia vencer um candidato que tem por slogan "Portugal Maior" ou outro que lançou: "cidadão inteligente quer Alegre Presidente". Poderia o povo português dar-se ao luxo, mesmo que permanentemente insatisfeito, especialmente com os outros e satisfeito consigo próprio, de abdicar daquele que reconhece ser o que mais fez, o que mais lutou, o que mais vezes esteve do lado certo da história. Poderia o cidadão português passar ao lado de todo o tipo de ataques injuriosos e permanentes, embora sem nenhuma verdade, como sem esperarmos pelo distanciamento histórico, já hoje sabemos: a bandeira pisada, a descolonização, o caso Casa Pia, os terrenos na OTA (com um artigo a circular na net, assinado por MST, sem que Miguel Sousa Tavares tenha nada a ver com o assunto). Na área do vale-tudo a nível pessoal, Soares tem-se limitado a atacar politicamente o adversário, mas por contraditório que possa aparentar, o mesmo povo que à boca pequena tudo contesta, prepara-se para instituir o silêncio táctico que poderia vir a marcar os próximos anos do país.
Poderia tudo isto acontecer, mas nunca como nestas eleições, estiveram no palco político tantos artistas, tantos cientistas e tantas mulheres e homens de importância real para o país, como o caso do Professor Sobrinho Simões, afinal aquilo que o nosso povo pede há muito, a abertura dos partidos políticos à denominada sociedade civil.

Eu votarei pela segunda vez em Mário Soares (até agora só o tinha feito nas Europeias de 13-06-1999. O meu cartão de eleitor é de 30-09-1993, pelo que não votei nas presidenciais de 13-01-1991, porque completei 18 anos em Junho de 1990, já depois do período de recenseamento eleitoral).
Para mim, este não será um voto qualquer. É um voto de afecto, de reconhecimento, de excelência. Quando daqui a 50 anos, mais ou menos com a idade de Mário Soares e se lá chegar e com lucidez, me lembrar que em 2006 apoiei e votei Soares, sei o que vou pensar. Vou pensar: "Nunca como naquelas eleições o meu voto significou tanto e me deu tanto orgulho".