terça-feira, fevereiro 15, 2005

A menina escondida

É verdadeiramente inacreditável o que se está a passar em termos públicos e mediáticos em torno do falecimento de Lúcia, a menina que, nunca saberemos, se escondeu, ou foi toda a vida escondida.

Como é possível que uma pessoa passe a vida inteira escondida, recolhida, desaparecida e na hora da sua morte, no momento mais íntimo de todos, seja exposta desta maneira? O seu cadáver é capa do DN, do Correio da Manhã, do Público (versão on line) para além de todas as imagens do corpo defunto, no Carmelo (palavra que confesso não encontrar em nenhum dicionário consultado), na Sé de Coimbra, em directo ou diferido, com os respectivos close ups da praxe. Porque é que a Igreja Católica promoveu esta situação? Naturalmente para quebrar um eventual mito esquizofrénico de vida eterna ou seja, para que alguns fanáticos não se negassem a acreditar no seu falecimento.
É uma vergonha sem limites, sem possibilidade de defesa: ninguém protege a senhora na hora da sua morte.

Lúcia faz parte de um embuste alimentado pela Igreja católica e pelo Estado Novo. Por causa deste protectorado nunca se perceberá o que levou aquela criança a inventar histórias, ou melhor se há ou não, no início, dolo (vontade premeditada de inventar, eventualmente promovida por alguém) ou simplesmente se tratou de uma fantasia de crianças que se tornou incontrolável.
De qualquer forma aquela história da Cova da Iria marcaria para sempre a vida daquela menina, depois mulher, não se podendo concluir que para mal, uma vez que, no meio social muito pobre em que crescia, à data dos acontecimentos, desconhece-se se aspiraria a uma vida pelo menos descansada, do ponto de vista dos bens essenciais (comida, roupa, dormida) ou se, pelo contrário, passaria uma vida de privações como provavelmente aconteceu a muitos(as) contemporâneos(as) seus.
Mas a história do sol que se move no sentido da multidão e é sustido, por milagre, antes do impacto não pode ser levada a sério, simplesmente à luz das impossilidade de tal facto ocorrer. Para além disso, esta invenção esconde um aspecto tenebroso: o falecimento de duas crianças, num país que durante décadas foi marcado por taxas elevadíssimas de mortalidade infantil, sem que nada se tenha feito para alterar esse destino de muitas meninas e meninos. Pior só mesmo procurar agora, no seio de uma sociedade que se quer moderna, festejar esse facto, porque "Nossa Senhora os veio buscar".

Um outro efeito assustador ganha agora contornos perversos: depois dos partidos da direita terem hipocritamente cancelado a Campanha Eleitoral (os argumentos são dos próprios (e únicos) bispos que se manifestaram sobre o assunto), a cobertura dada ao acontecimento pela comunicação social (com especial enfoque para toda a programação da RTP, em directo do velório) revela que se pode estar perante uma dramatização pública, sem precedentes nesta campanha, que procura esconder dos portugueses, questões políticas de fundo.

Resta-me esperar alguma contenção por parte de todos. Mas também exigir respeito na hora da morte, que é a melhor coisa que podemos fazer pela Menina Escondida.

3 Comments:

At 5:28 da tarde, Blogger Unknown said...

Em que se sustenta para qualificar a Irma Lucia de um embuste?
Se não é Catolico pelo menos respeite quem o é.

 
At 5:47 da tarde, Blogger HB said...

Meu caro senhor: disse "faz parte de um embuste", não a qualifiquei de.
E sabe, em democracia pode-se discutir tudo, naturalmente com respeito, coisa que não está a haver por parte dos católicos.
Ou discutir aquilo que para mim é um embuste, me torna num crimionoso?
Já lá vai o tempo que os milagres não se discutiam.
Cumprimentos.

 
At 12:54 da tarde, Blogger LP said...

Caro Amigo,

De acordo com a habitual tolerância católica ainda acabas na fogueira. É que isto de discutir aquilo que alguns querem que seja a verdade pode não ser conveniente.
Sr. van uden, não vejo onde é que encontrou a falta de respeito, ou será que ter uma opinião diferente da sua é uma falta de respeito?

 

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