Entretenimento Ideológico
1. Ainda sobre a ficção
Passada cerca de uma década sobre o Big Brother, durante a qual José Eduardo Moniz reclamou, catapultado pelo “sucesso do pontapé de Marco”, a criação de uma indústria de ficção, podemos agora fazer um curto balanço.
Será quantidade, qualidade? Será legítimo ter havido tanto investimento numa área, sem avaliação concreta dos resultados? Há mais pessoas a ver televisão por causa da ficção? Os portugueses gostam hoje mais das novelas, dos actores e das estações de televisão? Realmente, aproximaram-se em número de pessoas e aumentaram os seus laços de simpatia? Essa indústria… Têm os actores as suas profissões asseguradas de modo digno, estável e em condições sociais equivalentes a outros portugueses? E os técnicos? E as empresas de produção audiovisual e de meios e equipamentos? Beneficiaram, melhoraram, criaram emprego, ajudaram a economia?
Afinal. Qual foi o investimento e qual é o verdadeiro retorno? Quanto se gasta anualmente por cada espectador que assiste à ficção televisiva nacional? Quanto/o que realmente se perde por cada espectador que não se identifica, mudando para a oferta anglófona do Cabo, ou desistindo de ver/ter televisão? Estamos, ou não estamos, no ciclo de perda de identificação que o cinema viveu desde a divisão do bolo concretizada pelos realizadores e produtores no rescaldo de Abril de 74?
2. A Vida Privada de Salazar
A mini-série ontem apresentada pela SIC merece alguma reflexão. É alegadamente inspirada em vários livros, inclusive nos “Amores de Salazar” da jornalista Felícia Cabrita. Nela (a série), fingem mostrar as relações íntimas de Salazar. Ninguém melhor que Nuno Santos (já tinha coordenado o “Maior Português”) para dar o aval à exibição do carácter pessoal de um político, que aliás, sempre o escondeu. Nada interessa menos aos portugueses que Salazar enrolado com Soraia. Já a tínhamos visto com um padre e de forma bem mais explícita.
O verdadeiro desafio proposto pelos autores e produtores da série, os responsáveis de programação e os administradores da Impresa, é mostrar o lado humano do terrível ditador. As suas dúvidas em relação à Guerra, a forma como é poupadinho, até a desenrolar um presente poupa o cordel e o papel, como declara a Cerejeira (meu Deus que pontapé na história) o afastamento relacional motivado por ser Presidente do Conselho e “Manuel,” o Cardeal… Como expele a beata conterrânea que a ele se queixa dos subversivos. Uma história onde não existem perseguições, presos, torturas e assassinatos. Bem vistas as coisas, a série da SIC em nada separa a origem humilde, o bom julgamento e o amor à pátria de Salazar e Barack Obama :)
A série da SIC esquece os que lutaram pela democracia, que foram torturados e assassinados e que tinham família! Um país que passou fome, cuja moeda era forte para benefício das grandes corporações, todas, todas, feitas com o regime, mas em que o povo comia com senhas de racionamento. E cujo desenvolvimento intelectual era também racionado.
Estes aspectos não são despiciendos. São realmente importantes no quadro da decisão de investir neste conjunto de tricas que disfarçam a absolvição da figura de Salazar, pela via mais conveniente. A pessoal. Desconhecida, pouco provável e, apesar de tudo, a menos importante de todas. É verificável que dos democratas não reza a história. Séries, documentários e livros de merda, demonstram, na sua maioria, duas coisas: o 25 de Abril (e o pós) e a maravilha dos early years do fascismo (agora até se diz que não houve fascismo em Portugal).
Poderia enumerar um conjunto de histórias e livros que seguiriam um rumo programático diferente. Eis, em jeito de exercício, exemplos de títulos:
O General sem Medo;
Assalto ao Santa Maria;
Assalto ao Banco da Figueira;
Fuga de Peniche;
A Vida de um exilado;
Eusébio: quase o melhor de sempre.
3. Estamos de acordo
Tenho defendido, embora pouco levado a sério, que a programação deve ter tendência ideológica. Que a minha ideia fique clara: a informação de uma estação deve ser verdadeiramente isenta. Isso não acontece em nenhuma delas. Sempre que não são rigorosos perdem pessoas, perdem audiências.
Mas as escolhas de entretenimento e ficção devem ter uma tendência clara. Essa ideologia na decisão já existe: “Nós por cá”, “Caia quem Caia”, “Prós e Contras”, “O maior português de sempre”. Chega agora à ficção e é bom que não se fique só pela esfera conservadora.
4. Da Série
Bem se vê a (ausência da) tal evolução na ficção portuguesa. Para mim é simples. Ficção bidimensional, sem drama, mal interpretado e sem realização.
Diogo Morgado tem um problema. Fala português com pronúncia inglesa. Os “d” e “t” aspirados, não o devem ser. Fecha a boca a falar, como Diogo Infante e Ricardo Carriço. Bastava a consciência da sua dicção para melhorar a sua credibilidade. Que nunca chegaria para ser escolhido para fazer Salazar.
Bastaria aos argumentistas terem lido um daqueles livritos para adolescentes que resumem e explicam a estrutura da tragédia clássica, para entenderem que não se contam histórias sem desenvolvimento dramático. Clímax, motivação, desilusão, surpresa, paixão, morte. Por exemplo.
(Nota: gastam-se centenas de milhares de euros num episódio e ninguém verifica que a cópia de emissão tem um drop de mais de 20 segundos).
Passada cerca de uma década sobre o Big Brother, durante a qual José Eduardo Moniz reclamou, catapultado pelo “sucesso do pontapé de Marco”, a criação de uma indústria de ficção, podemos agora fazer um curto balanço.
Será quantidade, qualidade? Será legítimo ter havido tanto investimento numa área, sem avaliação concreta dos resultados? Há mais pessoas a ver televisão por causa da ficção? Os portugueses gostam hoje mais das novelas, dos actores e das estações de televisão? Realmente, aproximaram-se em número de pessoas e aumentaram os seus laços de simpatia? Essa indústria… Têm os actores as suas profissões asseguradas de modo digno, estável e em condições sociais equivalentes a outros portugueses? E os técnicos? E as empresas de produção audiovisual e de meios e equipamentos? Beneficiaram, melhoraram, criaram emprego, ajudaram a economia?
Afinal. Qual foi o investimento e qual é o verdadeiro retorno? Quanto se gasta anualmente por cada espectador que assiste à ficção televisiva nacional? Quanto/o que realmente se perde por cada espectador que não se identifica, mudando para a oferta anglófona do Cabo, ou desistindo de ver/ter televisão? Estamos, ou não estamos, no ciclo de perda de identificação que o cinema viveu desde a divisão do bolo concretizada pelos realizadores e produtores no rescaldo de Abril de 74?
2. A Vida Privada de Salazar
A mini-série ontem apresentada pela SIC merece alguma reflexão. É alegadamente inspirada em vários livros, inclusive nos “Amores de Salazar” da jornalista Felícia Cabrita. Nela (a série), fingem mostrar as relações íntimas de Salazar. Ninguém melhor que Nuno Santos (já tinha coordenado o “Maior Português”) para dar o aval à exibição do carácter pessoal de um político, que aliás, sempre o escondeu. Nada interessa menos aos portugueses que Salazar enrolado com Soraia. Já a tínhamos visto com um padre e de forma bem mais explícita.
O verdadeiro desafio proposto pelos autores e produtores da série, os responsáveis de programação e os administradores da Impresa, é mostrar o lado humano do terrível ditador. As suas dúvidas em relação à Guerra, a forma como é poupadinho, até a desenrolar um presente poupa o cordel e o papel, como declara a Cerejeira (meu Deus que pontapé na história) o afastamento relacional motivado por ser Presidente do Conselho e “Manuel,” o Cardeal… Como expele a beata conterrânea que a ele se queixa dos subversivos. Uma história onde não existem perseguições, presos, torturas e assassinatos. Bem vistas as coisas, a série da SIC em nada separa a origem humilde, o bom julgamento e o amor à pátria de Salazar e Barack Obama :)
A série da SIC esquece os que lutaram pela democracia, que foram torturados e assassinados e que tinham família! Um país que passou fome, cuja moeda era forte para benefício das grandes corporações, todas, todas, feitas com o regime, mas em que o povo comia com senhas de racionamento. E cujo desenvolvimento intelectual era também racionado.
Estes aspectos não são despiciendos. São realmente importantes no quadro da decisão de investir neste conjunto de tricas que disfarçam a absolvição da figura de Salazar, pela via mais conveniente. A pessoal. Desconhecida, pouco provável e, apesar de tudo, a menos importante de todas. É verificável que dos democratas não reza a história. Séries, documentários e livros de merda, demonstram, na sua maioria, duas coisas: o 25 de Abril (e o pós) e a maravilha dos early years do fascismo (agora até se diz que não houve fascismo em Portugal).
Poderia enumerar um conjunto de histórias e livros que seguiriam um rumo programático diferente. Eis, em jeito de exercício, exemplos de títulos:
O General sem Medo;
Assalto ao Santa Maria;
Assalto ao Banco da Figueira;
Fuga de Peniche;
A Vida de um exilado;
Eusébio: quase o melhor de sempre.
3. Estamos de acordo
Tenho defendido, embora pouco levado a sério, que a programação deve ter tendência ideológica. Que a minha ideia fique clara: a informação de uma estação deve ser verdadeiramente isenta. Isso não acontece em nenhuma delas. Sempre que não são rigorosos perdem pessoas, perdem audiências.
Mas as escolhas de entretenimento e ficção devem ter uma tendência clara. Essa ideologia na decisão já existe: “Nós por cá”, “Caia quem Caia”, “Prós e Contras”, “O maior português de sempre”. Chega agora à ficção e é bom que não se fique só pela esfera conservadora.
4. Da Série
Bem se vê a (ausência da) tal evolução na ficção portuguesa. Para mim é simples. Ficção bidimensional, sem drama, mal interpretado e sem realização.
Diogo Morgado tem um problema. Fala português com pronúncia inglesa. Os “d” e “t” aspirados, não o devem ser. Fecha a boca a falar, como Diogo Infante e Ricardo Carriço. Bastava a consciência da sua dicção para melhorar a sua credibilidade. Que nunca chegaria para ser escolhido para fazer Salazar.
Bastaria aos argumentistas terem lido um daqueles livritos para adolescentes que resumem e explicam a estrutura da tragédia clássica, para entenderem que não se contam histórias sem desenvolvimento dramático. Clímax, motivação, desilusão, surpresa, paixão, morte. Por exemplo.
(Nota: gastam-se centenas de milhares de euros num episódio e ninguém verifica que a cópia de emissão tem um drop de mais de 20 segundos).
1 Comments:
A favor do rigor histórico e sem qualquer simpatia pelo "Estado Novo", as senhas de racionamento foram só durante a guerra, nos anos 50 e 60 do século XX já não existiam. Depois voltou a haver racionamento dos bens essenciais, como o leite e o pão, mas foi durante o tempo "glorioso" do Gonçalvismo
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